O anúncio da eleição de Ana Maria Gonçalves para a Academia Brasileira de Letras foi recebido com euforia e alívio. Afinal, depois de 128 anos, a instituição fundada por Machado de Assis — ele próprio um homem negro que precisou, como tantos outros, disfarçar sua condição para ser aceito pela elite letrada de seu tempo — acolhe, pela primeira vez, uma mulher negra em seus quadros. O gesto, embora justo e necessário, é tratado como evidência de uma marcha irreversível rumo ao progresso moral e social. Mas essa leitura, tão sedutora quanto confortável, é também uma ilusão.
A história humana raramente avança em linha reta. As conquistas sociais e culturais que hoje celebramos, por mais significativas que sejam, não compõem um enredo contínuo de superação das desigualdades. São interrupções efêmeras em um padrão recorrente de exclusão e poder. A presença de Gonçalves na ABL é, portanto, menos um marco de transformação definitiva e mais uma rara abertura em uma instituição cuja própria existência reflete os limites daquilo que chamamos de “progresso”.
A Academia, como tantas outras instituições, não é um espaço de pura criação literária ou de celebração da diversidade. É, antes, um bastião simbólico de uma elite cultural que sobrevive adaptando-se o mínimo necessário para manter sua relevância. Ao eleger uma autora que representa os que foram historicamente excluídos, a ABL não rompe com sua tradição: ela apenas absorve a diferença para continuar existindo sob a aparência de mudança.
O caso de Conceição Evaristo, rejeitada anos antes apesar da pressão popular, revela essa dinâmica com clareza. Não foi a falta de mérito literário que barrou sua entrada, mas a ameaça que sua candidatura, apoiada por um movimento popular, representava para a lógica interna da Academia. O contraste com a eleição de Gonçalves mostra que a abertura ocorre quando não ameaça demais a estrutura de poder.
Nada disso diminui a importância do feito para leitores e escritores negros no Brasil, nem o impacto cultural que Gonçalves continuará a exercer. Mas é preciso compreender o evento não como uma prova do avanço moral da sociedade, e sim como parte de um ciclo: momentos de reconhecimento e inclusão coexistem com forças que buscam, sempre, restaurar uma ordem excludente.
Celebrar o ingresso de Ana Maria Gonçalves na ABL é legítimo. Mas acreditar que tal gesto representa uma mudança duradoura no curso da história é sucumbir à ilusão progressista. A verdadeira lição aqui é outra: os raros avanços que conquistamos não são permanentes, e a luta pela representação não termina com uma eleição. A história, como sempre, continua indiferente aos nossos desejos de final feliz.
A espécie humana, como todos os organismos dotados de consciência, é perita em criar ficções para suportar o insuportável: a banalidade da existência, o tédio dos dias, a ausência de um propósito cósmico. Entre as mais sofisticadas dessas ficções está a literatura. Mas não me refiro aqui ao amontoado de sentimentos mal digeridos que, numa noite úmida de solidão, se transmutam em diários febris ou cartas jamais enviadas — esses murmúrios íntimos da alma são, na melhor das hipóteses, excreções do eu. Falo daquela escrita que muitos cultuam como arte: a narrativa moldada com técnica, ritmo, arquitetura simbólica — e, sobretudo, com o nobre empenho de dar sentido ao que, em si, não tem sentido algum.
É curioso observar como a humanidade, mesmo após enterrar seus deuses, insiste em salvar a experiência pela forma. Derrubamos catedrais, mas erguemos bibliotecas. Já não acreditamos em redenção espiritual, mas juramos por um refinamento estético. O impulso é o mesmo: transcendência. A escrita literária, segundo muitos bem-intencionados, seria a transfiguração do real — esse termo curioso que pretende cobrir com verniz algo que talvez não devesse ser mostrado de maneira alguma.
Um dos dogmas contemporâneos mais caros à religião secular da literatura é o da “transformação da vivência”. A matéria bruta do cotidiano — infância, perdas, paisagens emocionais — deve ser submetida a um processo alquímico onde a técnica e a forma operam como sacerdotes. O escritor, esse monge laico, não mais busca a salvação da alma, mas a eternidade simbólica de sua experiência. O curioso é que, mesmo entre ateus, persiste a fé de que o vivido só se justifica quando se converte em obra. Uma crença tocante, quase comovente, não fosse tão obviamente inútil.
A escrita íntima — a confissão espontânea ao papel — ao menos tem o mérito da sinceridade. Nela, ninguém finge que está criando beleza, ou buscando unidade estrutural, ou encenando personagens com “ritmo interno” (seja lá o que isso signifique). É o ser humano em carne ferida, procurando um eco no vazio. Já a literatura “propriamente dita”, como alguns a chamam com um fervor quase sacerdotal, envolve um grau adicional de ilusão: a ideia de que, ao organizar o caos, podemos compreender algo. Ou, mais risivelmente, que ao compreender, podemos transformar.
Não nego que a literatura exija técnica. É claro que exige. Também exige tempo, esforço e, muitas vezes, um certo masoquismo de espírito. Mas a reverência à “forma literária” como se ela fosse uma resposta à miséria existencial é apenas mais uma forma de religião — uma entre tantas. A diferença é que essa religião foi secularizada, higienizada para agradar às sensibilidades modernas. Não se fala mais em alma, mas em construção simbólica. Não se busca mais a salvação eterna, mas a permanência estética. A ironia é que, por mais sofisticado que seja o romance, ele será consumido, sublinhado, comentado, abandonado — e esquecido, como tudo o mais.
Há, no entanto, algo deliciosamente humano nessa tentativa de alcançar o universal pela minúcia do detalhe. O autor, de posse de suas memórias (traumas de infância ou tardes de domingo), acredita poder tocar o outro — o leitor — de maneira profunda e duradoura. E, às vezes, consegue. O milagre da empatia, essa aberração da evolução, permite que uma história escrita num quarto escuro em Lisboa encontre eco num metrô lotado em Tóquio. Isso não prova, como alguns diriam, a grandiosidade da literatura. Prova, antes, a profunda e patética necessidade humana de se reconhecer no outro — mesmo que esse outro seja um fantasma inventado por palavras.
Os literatos falam da forma como quem fala de uma liturgia. Tudo deve ser medido, calculado, ritmado. O silêncio é recurso. A pausa, um gesto de inteligência narrativa. O cenário, um personagem adicional. Chega a ser adorável a maneira como transformam o ato de escrever num ritual sagrado — ainda que a cerimônia não salve ninguém, nem mesmo o autor. Mas quem sou eu para rir disso? Eu, que observo o mundo com um ceticismo tão inflexível quanto estéreo, não posso deixar de admirar essas pequenas mentiras que nos impedem de enlouquecer.
No fim, o que chamamos de “boa literatura” talvez não seja senão o mais elaborado dos desabafos. Um desabafo que se envergonha de si mesmo, e que, para disfarçar a vergonha, se veste com as roupas da técnica. O leitor, cúmplice nesse teatro, finge acreditar que há ali mais do que um ego falando — e, ao fazê-lo, sente-se tocado, engrandecido, transformado. Tudo isso é encantador. E absolutamente ilusório.
E, no entanto, funciona. Como funcionam as religiões, os sistemas morais, os ritos de passagem. A boa literatura, assim como o bom mito, cria a sensação de que há sentido onde só há fluxo. Molda, como foi dito, quem a recebe. Mas molda para quê? Para suportar um pouco melhor a próxima perda? Para tornar suportável o silêncio das estrelas?
Talvez. Ou talvez apenas para adiar, mais uma vez, o confronto com o nada. E, se for esse o caso, bendita seja a forma.
Entre as muitas farsas que sustentam a vida moderna, talvez a mais refinada seja a crença no progresso moral. Que as coisas caminham, ainda que lentamente, para melhor — eis a liturgia secular do nosso tempo. Mas o teatro de Tchékhov, como a vida propriamente dita, opera sob outra lógica: não há progresso, apenas repetição. Em Tio Vânia, essa repetição é uma forma de castigo, mas também de revelação. Trata-se da encenação da acídia em seu estado mais cru: o cansaço profundo com o presente, a recusa persistente do que se tem, aliada ao desejo obsessivo por aquilo que nunca virá.
Tio Vânia — o Ivan da peça — é o anti-herói que não fracassou por falta de talento, mas por excesso de ressentimento. Ele vê no professor Alexandre — intelectual pomposo e desinteressado — o usurpador de uma glória que julga merecer. Mas esse sentimento, tão comum quanto corrosivo, é sustentado por uma falácia interior: a de que havia uma vida grandiosa esperando por ele em alguma bifurcação remota, e que foi impedido de vivê-la por contingências externas. Tchékhov é impiedoso ao mostrar que essa vida nunca existiu. Vânia nunca teria sido um Schopenhauer, tampouco um Dostoiévski. Ele é apenas um homem preso à própria biografia, incapaz de aceitar que o mundo, na verdade, não lhe deve nada.
Nesse sentido, a chegada de Elena é um golpe de misericórdia. Sua juventude e beleza — atributos que, na lógica da peça, são quase que insultos ao restante dos personagens — funcionam como um espelho invertido. Em Ástrov, médico e ecologista avant la lettre, Elena acende a chama do que poderíamos chamar de delírio utópico: o sonho de uma vida outra, mais sensata, mais bela, mais justa. Ele planta árvores não porque acredita em um futuro melhor, mas para suportar o presente. Seu reflorestamento é um ritual fúnebre, uma tentativa desesperada de imprimir sentido num mundo que já desistiu de si mesmo.
A todos esses personagens, Tchékhov oferece o que poderíamos chamar de um consolo cruel: a lucidez. Não há resolução, não há redenção. Há apenas Sônia. E é justamente ela, essa figura quase apagada, que pronuncia as palavras mais devastadoras e, paradoxalmente, mais ternas da história do teatro. Seu monólogo final não é uma esperança — é uma súplica. O que ela oferece ao tio não é uma solução, mas um horizonte de rendição: o descanso eterno como única forma de justiça.
Mas se Sônia acredita com fervor, Tchékhov não acredita com ela. Sua fé é comovente, mas o violão de Tieliéguin, que a acompanha em surdina, transforma sua fala numa espécie de canção fúnebre. O paraíso que ela descreve é uma projeção tão irreal quanto as ambições de Vânia. Deus vai ter pena de nós — diz ela. Mas o que ecoa, na verdade, é o silêncio de um universo indiferente, onde o consolo está apenas na capacidade humana de fantasiar.
E no entanto — e aqui está a catártica contradição — há uma beleza insuportável nessa fantasia. Há grandeza, não na vitória, mas na dignidade da rendição. Há uma forma de resistência silenciosa no trabalho sem glória, no amor não correspondido, na espera sem fim. Viver sem sentido talvez seja insuportável, mas viver fingindo que o sentido nos será revelado é, curiosamente, o que nos mantém em pé.
Tio Vânia não nos pede para sermos heróis. Pede apenas que suportemos. Que aceitemos o cansaço como parte da vida, e não como exceção. E que reconheçamos, como num eco distante da voz de Sônia, que o descanso — esse descanso prometido — talvez nunca venha, mas que há uma estranha e silenciosa redenção na espera.
A modernidade, com seu frenesi de metas e performances, teme esse tipo de quietude. Mas Tchékhov nos lembra de que o mundo pertence não aos que vencem, mas aos que persistem. E que, no fim, talvez tudo o que nos reste seja o consolo murmurante de uma sobrinha exausta, dizendo com lágrimas e ternura:
“Nós vamos descansar.”
A acídia é uma doença espiritual (psicológica), e como toda doença da alma, ela se manifesta sob disfarces civilizados. No universo de Tchékhov, esse mal se revela não com o barulho de bombas ou revoluções, mas com o silêncio morno de uma floresta esquecida e o som seco de um machado ao longe. O Jardim das Cerejeiras — peça que, de forma pungente, encerra o século XIX — retrata um mundo não apenas em ruína, mas em negação melancólica da própria decadência. É a peça da transição, não apenas de uma classe social, mas de uma visão de mundo — e, como sempre, as transições são encenadas em surdina.
Liuba Raniévskaia, a aristocrata descompromissada, é uma figura que nos convida a refletir sobre o esvaziamento de sentido que caracteriza as elites ocidentais — russas ou não — à medida que seu mundo se aproxima do colapso. Seu apego ao passado é menos uma fidelidade à tradição do que uma forma requintada de recusa. Ela não quer salvar o cerejal. Ela tampouco quer salvá-lo da destruição. Ela simplesmente não quer saber. A cabeça está em Paris, o corpo numa fazenda falida, e a alma… ausente.
A acídia, como os monges da antiguidade sabiam, não é mera preguiça, mas uma desesperança sutil que disfarça seu niilismo com nostalgia. É a sensação de que tudo já foi vivido, de que o presente é uma provação e o futuro, uma irrelevância. O jardim das cerejeiras, com suas flores delicadas, é o símbolo de uma beleza que já não é útil e, por isso, parece não merecer existir. Mas seu destino trágico — ser derrubado para dar lugar a casas de veraneio — não é consequência da necessidade, e sim da falência de imaginação de uma classe incapaz de transformar memória em ação.
Estamos, nós também, num jardim de cerejeiras. Vivemos rodeados por símbolos que já não compreendemos, insistindo em preservar formas vazias de vida enquanto os ventos de mudança sopram — impessoais, implacáveis, indiferentes às nossas hesitações sentimentais. A modernidade tardia que vivemos é uma versão aumentada dessa acídia. Não somos mais assombrados por ideologias totalitárias, mas por um tédio existencial que se fantasia de progresso e inovação.
O banqueiro prático que sugere a venda do cerejal não é um vilão — é o novo mundo que chega, com seus cálculos racionais e seus horizontes rasos. Ele triunfa não porque é forte, mas porque ninguém mais acredita no que o cerejal representava. Quando as ideias morrem, o mundo não termina em chamas — termina em contratos de financiamento e novos loteamentos.
E, ainda assim, há um paradoxo revelador: talvez a única figura que enxerga algo como futuro seja justamente aquele que deseja destruir o jardim. O niilismo dos práticos é ativo, construtor de ruínas. Já o niilismo dos sentimentais é contemplativo, estético, profundamente estéreo. Ambos vivem numa cultura da extração — extração de madeira, de memória, de sentido.
Mas há uma catarse, sim — uma que talvez Tchékhov apenas tenha sugerido. Ela não está na salvação do jardim, tampouco na vitória dos novos senhores. A catarse está no silêncio final da peça, quando se ouve o som distante de uma árvore caindo. É um som de luto, mas também de libertação. O mundo antigo morre não com violência, mas com uma espécie de dignidade vegetal. Aqueles que permanecem — espectadores ou personagens — não têm escolha a não ser ouvir.
O século XXI, com suas promessas recicladas e tecnologias oraculares, também terá de escutar esse som. Pois, para além da decadência e da negação, existe sempre a possibilidade — remota, incômoda — de plantar um novo jardim. Não para reviver o passado, mas para reconhecer, com humildade, que o que se perdeu talvez só tenha valor quando somos capazes de recomeçar sem nostalgia.
Eis, então, o gesto catártico: não lutar para salvar o cerejal, mas aprender com sua queda. A esperança, se houver alguma, não está nas árvores que florescem, mas naqueles que, mesmo após o último machado, permanecem em silêncio e escutam.
Liuba Raniévskaia, a aristocrata descompromissada, é uma figura que nos convida a refletir sobre o esvaziamento de sentido que caracteriza as elites ocidentais — russas ou não — à medida que seu mundo se aproxima do colapso. Seu apego ao passado é menos uma fidelidade à tradição do que uma forma requintada de recusa. Ela não quer salvar o cerejal. Ela tampouco quer salvá-lo da destruição. Ela simplesmente não quer saber. A cabeça está em Paris, o corpo numa fazenda falida, e a alma… ausente.
A acídia, como os monges da antiguidade sabiam, não é mera preguiça, mas uma desesperança sutil que disfarça seu niilismo com nostalgia. É a sensação de que tudo já foi vivido, de que o presente é uma provação e o futuro, uma irrelevância. O jardim das cerejeiras, com suas flores delicadas, é o símbolo de uma beleza que já não é útil e, por isso, parece não merecer existir. Mas seu destino trágico — ser derrubado para dar lugar a casas de veraneio — não é consequência da necessidade, e sim da falência de imaginação de uma classe incapaz de transformar memória em ação.
Estamos, nós também, num jardim de cerejeiras. Vivemos rodeados por símbolos que já não compreendemos, insistindo em preservar formas vazias de vida enquanto os ventos de mudança sopram — impessoais, implacáveis, indiferentes às nossas hesitações sentimentais. A modernidade tardia que vivemos é uma versão aumentada dessa acídia. Não somos mais assombrados por ideologias totalitárias, mas por um tédio existencial que se fantasia de progresso e inovação.
O banqueiro prático que sugere a venda do cerejal não é um vilão — é o novo mundo que chega, com seus cálculos racionais e seus horizontes rasos. Ele triunfa não porque é forte, mas porque ninguém mais acredita no que o cerejal representava. Quando as ideias morrem, o mundo não termina em chamas — termina em contratos de financiamento e novos loteamentos.
E, ainda assim, há um paradoxo revelador: talvez a única figura que enxerga algo como futuro seja justamente aquele que deseja destruir o jardim. O niilismo dos práticos é ativo, construtor de ruínas. Já o niilismo dos sentimentais é contemplativo, estético, profundamente estéreo. Ambos vivem numa cultura da extração — extração de madeira, de memória, de sentido.
Mas há uma catarse, sim — uma que talvez Tchékhov apenas tenha sugerido. Ela não está na salvação do jardim, tampouco na vitória dos novos senhores. A catarse está no silêncio final da peça, quando se ouve o som distante de uma árvore caindo. É um som de luto, mas também de libertação. O mundo antigo morre não com violência, mas com uma espécie de dignidade vegetal. Aqueles que permanecem — espectadores ou personagens — não têm escolha a não ser ouvir.
O século XXI, com suas promessas recicladas e tecnologias oraculares, também terá de escutar esse som. Pois, para além da decadência e da negação, existe sempre a possibilidade — remota, incômoda — de plantar um novo jardim. Não para reviver o passado, mas para reconhecer, com humildade, que o que se perdeu talvez só tenha valor quando somos capazes de recomeçar sem nostalgia.
Eis, então, o gesto catártico: não lutar para salvar o cerejal, mas aprender com sua queda. A esperança, se houver alguma, não está nas árvores que florescem, mas naqueles que, mesmo após o último machado, permanecem em silêncio e escutam.
A civilização moderna é construída sobre a ilusão do progresso. Essa é a grande fé secular do nosso tempo — mais penetrante e inquestionada do que qualquer religião monoteísta. Em nome do progresso, as sociedades sacrificaram tradições, rasgaram vínculos e trocaram a sabedoria local por promessas abstratas. Nenhuma patologia revela mais claramente as rachaduras desse culto do que a acídia — não no sentido medieval, mas em sua manifestação contemporânea: a tristeza melancólica dos que vivem presos entre mundos, incapazes de pertencer a qualquer um deles.
O Brasil, como outros países condenados à condição de eternamente “em desenvolvimento”, é um viveiro dessa aflição. A acídia brasileira, no entanto, é uma variante tropical de um mal mais antigo e mais vasto, conhecido de forma pungente pela aristocracia russa do século XIX — um grupo de senhores de terras que falavam francês e contemplavam a alma russa como um objeto exótico e inferior. Essa classe, muito antes de qualquer globalização, já era cosmopolita em forma e provinciana em essência, e por isso mesmo mergulhada em uma crise espiritual sem solução.
Não é por acaso que tantos intelectuais brasileiros se reconhecem em Herzen ou Tchékhov: são, como eles, mazombos espirituais — filhos bastardos do Iluminismo europeu nascidos em terras onde a razão sempre foi um animal importado e desconfortável. Eles pensam em francês ou inglês, mas vivem em português; alimentam-se de ideias formuladas em Londres, Nova York ou Paris, mas aplicam-nas num solo que nunca se prestou a elas. Estão, como disse Ortega y Gasset de maneira menos brutal do que se merecia, "deslocados": não por opção, mas por condição.
O dilema do mazombo, essa figura meio-casta da modernidade periférica, é o mesmo do homem secular em qualquer parte do mundo. Pois a secularização, longe de libertar os indivíduos da culpa e da salvação, apenas transmutou esses temas em novas linguagens. Hoje, não se busca mais a vida eterna, mas a realização pessoal; não se teme mais o inferno, mas o fracasso; não se espera mais pelo Juízo Final, mas pelo dia em que se terá sucesso, reconhecimento e plenitude — tudo isso garantido não por um Deus, mas pelo mercado, pela psicologia positiva ou pelo algoritmo. A tristeza que acomete o brasileiro de classe média ao rolar o feed não é tão diferente da melancolia do monge medieval ao perceber sua fé vacilante. Ambos vivem o colapso de um horizonte de sentido.
Mas ao contrário do monge, o moderno não reconhece sua tristeza como sintoma de uma perda espiritual. Ele a chama de depressão, esgotamento, falta de foco — e prescreve a si mesmo meditação guiada, viagens ao exterior ou alguma outra solução tecnológica para um problema que é, fundamentalmente, teológico. Pois a acídia, como a compreendia Tomás de Aquino, era a tristeza diante da percepção de que a salvação não viria. O moderno, mesmo tendo abolido a ideia de salvação, sofre da mesma dor: ele também sente que nunca chegará a ser aquilo que prometeu a si mesmo ser. Ele também tem um “inferno”, feito não de fogo, mas de irrelevância.
Nesse aspecto, o brasileiro mazombo, com seu inglês entrecortando o português e seus ideais importados da Nova Zelândia, nada mais é do que um mártir tardio de uma religião morta — a religião do progresso universal. Como seus antepassados russos, ele habita um tempo histórico desajustado: o presente de seu país e o futuro de sua mente estão em permanente desencontro. Ele se movimenta com frenesi, como os revolucionários niilistas de Dostoiévski, mas seu desespero não é político: é metafísico. Ele não acredita mais em Deus, mas também não consegue crer na democracia, no crescimento econômico ou nas promessas da modernidade liberal. Como poderia? Essas promessas não foram feitas para ele.
Talvez, então, a acídia contemporânea não seja um desvio, mas o estado natural do homem moderno. A crença no progresso foi uma anomalia, uma breve chama de fé antes que a noite voltasse. A resignação dos russos diante de sua própria desgraça talvez tenha sido mais sábia do que a esperança brasileira de “chegar lá”. Pois onde exatamente é “lá”? Quem disse que lá é melhor do que aqui? E mais importante: por que deveríamos desejar ser salvos?
As religiões pelo menos tinham a honestidade de reconhecer que a vida é sofrimento e que qualquer promessa de redenção seria misteriosa e incerta. A modernidade, com sua autoajuda disfarçada de ciência social, nos prometeu o céu agora — e, ao fracassar, deixou apenas a ressaca. A acídia, essa tristeza que nasce da esperança falida, é o lembrete de que toda utopia termina em tédio, ou em crueldade. Talvez, como os santos do deserto, devêssemos aprender a não esperar salvação alguma. Isso, pelo menos, seria um começo mais honesto.
Num dia qualquer, em meio ao zumbido das notificações que preenchem o cotidiano como sirenes invisíveis, um vídeo de gosto duvidoso chega pelo WhatsApp. Nenhuma legenda, nenhum pedido de desculpas: apenas a mensagem fria e súbita de quem, talvez por tédio, escolheu esquecer que também existe o bom senso.
O gesto — aparentemente banal — carrega em si algo maior. Em uma época onde cabos não mais nos conectam, mas dados invisíveis cruzam fronteiras com a velocidade de pensamento, há uma ausência que inquieta: o discernimento.
Pense numa senhora dos anos 1950, envolta por vestidos de tecido grosso e com um rádio de válvulas em cima da cristaleira. O que diria ela ao ver uma chamada de vídeo entre dois continentes, onde se partilha, não uma conversa sobre o tempo, mas um meme ruidoso?
As ferramentas estão aqui, brilhando como vitrines de um futuro que virou presente. Elas nos permitem reencontrar parentes esquecidos — como o tio-avô que ressurgiu das sombras graças ao Orkut — e resgatar histórias do passado por meio de pixels e emoticons. MSN, aquele salão de bate-papo digital agora extinto, foi palco de reconexões que nem o destino ousou escrever.
Mas, como em toda boa história, há um senão: o uso. Esses instrumentos, desenhados com a precisão dos relojoeiros suíços, muitas vezes se veem à mercê do improviso malicioso. O problema não são as redes, são os dedos. A conexão não é falha: é o humano.
Talese, mestre dos detalhes e da elegância dos gestos cotidianos, talvez encerrasse o pensamento com uma cena sutil — uma mesa de café, um celular sobre ela, e o silêncio entre duas pessoas refletindo se o que compartilham é presença... ou apenas ruído.
O gesto — aparentemente banal — carrega em si algo maior. Em uma época onde cabos não mais nos conectam, mas dados invisíveis cruzam fronteiras com a velocidade de pensamento, há uma ausência que inquieta: o discernimento.
Pense numa senhora dos anos 1950, envolta por vestidos de tecido grosso e com um rádio de válvulas em cima da cristaleira. O que diria ela ao ver uma chamada de vídeo entre dois continentes, onde se partilha, não uma conversa sobre o tempo, mas um meme ruidoso?
As ferramentas estão aqui, brilhando como vitrines de um futuro que virou presente. Elas nos permitem reencontrar parentes esquecidos — como o tio-avô que ressurgiu das sombras graças ao Orkut — e resgatar histórias do passado por meio de pixels e emoticons. MSN, aquele salão de bate-papo digital agora extinto, foi palco de reconexões que nem o destino ousou escrever.
Mas, como em toda boa história, há um senão: o uso. Esses instrumentos, desenhados com a precisão dos relojoeiros suíços, muitas vezes se veem à mercê do improviso malicioso. O problema não são as redes, são os dedos. A conexão não é falha: é o humano.
Talese, mestre dos detalhes e da elegância dos gestos cotidianos, talvez encerrasse o pensamento com uma cena sutil — uma mesa de café, um celular sobre ela, e o silêncio entre duas pessoas refletindo se o que compartilham é presença... ou apenas ruído.
Faz exatamente um mês, no dia em que escrevo estas linhas, que ele se foi. A ausência dele ainda reverbera como um eco surdo nos cantos da casa, e no silêncio do quarto durante a madrugada, o peso da perda parece ganhar forma. Foi nessa hora — aquela em que o corpo descansa mas a mente ainda vagueia — que ele me apareceu em sonho. A imagem dele surgiu nítida, como se estivesse de pé diante de mim, embora, mesmo no sonho, eu soubesse que estava dormindo. Ainda assim, tomei coragem e perguntei. Quis saber o porquê. Por que ele tinha feito aquilo? Por que escolhera morrer — ou, ao menos, por que permitira que a morte o levasse — deixando-nos aqui, com esse sofrimento mudo, essa espécie de luto que nem sempre se manifesta em lágrimas, mas pesa igual?
Sabia, claro, que qualquer resposta seria fabricada dentro dos porões do meu inconsciente, filtrada pelas minhas próprias angústias e desejos. Ainda assim, eu procurava por ela — a resposta. Buscava um sentido que, talvez, nem ele soubesse dar, nem em vida, quanto mais agora. Foi quando ele começou a falar. Disse que estava cansado. Cansado de lutar. As palavras soaram como se viessem de muito longe, por trás de uma parede espessa de tempo e distância. Eu quis perguntar que luta era essa — a luta contra o corpo? Contra a mente? Contra o mundo? — mas antes que pudesse formular a pergunta, fui puxado de volta ao mundo dos vivos. O nariz congestionado, a dor aguda na cabeça e uma sensação de mal-estar geral me arrancaram daquele breve reencontro onírico. Acordei, febril.
Minha mãe, que tenta manter a compostura, como quem acredita que o silêncio é uma forma de força, publicou algumas fotos dele no status do WhatsApp. Um gesto simples, mas carregado de dor. É a forma dela de falar sobre ele sem precisar usar palavras. É também sua forma de dizer que ainda sofre, mesmo quando finge que não. Porque há dores que se acomodam em silêncio e se camuflam nos pequenos gestos.
No final da tarde, saí com Lucky. O cachorro, com seu faro infalível para a rotina, insistiu com aquela ansiedade que só os animais têm para sair. Sua expectativa quase infantil me forçou a calçar os tênis, vestir uma blusa e acompanhar o ritmo da rua, que parecia ignorar que estávamos todos de luto. Quando voltamos, encontrei a sala preenchida por presenças conhecidas. Luana — com o pequeno Marco Antônio —, Grei, Esther. Minhas primas. Todas estavam ali, sentadas perto da minha mãe, com aquela expressão que mistura afeto e impotência. Vieram oferecer suas condolências, mesmo que discretas, como se o simples ato de estarem ali já bastasse. Em algum momento isso teria que acontecer: o luto compartilhado, o reconhecimento da perda por parte da comunidade.
Agora, no fim da noite, o corpo ainda dói. A febre persiste, a tosse aparece em intervalos cada vez mais curtos. Amanhã, terei aula o dia inteiro — tarde e noite. Não sei se estarei melhor até lá, mas pretendo ir. Um passo de cada vez, como quem tenta, aos poucos, retomar o movimento do mundo.
Sabia, claro, que qualquer resposta seria fabricada dentro dos porões do meu inconsciente, filtrada pelas minhas próprias angústias e desejos. Ainda assim, eu procurava por ela — a resposta. Buscava um sentido que, talvez, nem ele soubesse dar, nem em vida, quanto mais agora. Foi quando ele começou a falar. Disse que estava cansado. Cansado de lutar. As palavras soaram como se viessem de muito longe, por trás de uma parede espessa de tempo e distância. Eu quis perguntar que luta era essa — a luta contra o corpo? Contra a mente? Contra o mundo? — mas antes que pudesse formular a pergunta, fui puxado de volta ao mundo dos vivos. O nariz congestionado, a dor aguda na cabeça e uma sensação de mal-estar geral me arrancaram daquele breve reencontro onírico. Acordei, febril.
Minha mãe, que tenta manter a compostura, como quem acredita que o silêncio é uma forma de força, publicou algumas fotos dele no status do WhatsApp. Um gesto simples, mas carregado de dor. É a forma dela de falar sobre ele sem precisar usar palavras. É também sua forma de dizer que ainda sofre, mesmo quando finge que não. Porque há dores que se acomodam em silêncio e se camuflam nos pequenos gestos.
No final da tarde, saí com Lucky. O cachorro, com seu faro infalível para a rotina, insistiu com aquela ansiedade que só os animais têm para sair. Sua expectativa quase infantil me forçou a calçar os tênis, vestir uma blusa e acompanhar o ritmo da rua, que parecia ignorar que estávamos todos de luto. Quando voltamos, encontrei a sala preenchida por presenças conhecidas. Luana — com o pequeno Marco Antônio —, Grei, Esther. Minhas primas. Todas estavam ali, sentadas perto da minha mãe, com aquela expressão que mistura afeto e impotência. Vieram oferecer suas condolências, mesmo que discretas, como se o simples ato de estarem ali já bastasse. Em algum momento isso teria que acontecer: o luto compartilhado, o reconhecimento da perda por parte da comunidade.
Agora, no fim da noite, o corpo ainda dói. A febre persiste, a tosse aparece em intervalos cada vez mais curtos. Amanhã, terei aula o dia inteiro — tarde e noite. Não sei se estarei melhor até lá, mas pretendo ir. Um passo de cada vez, como quem tenta, aos poucos, retomar o movimento do mundo.
Na memória de um menino de nove anos, o dia em que sua mãe lhe apresentou à máquina de escrever portátil da marca Olivetti se cristalizou como um rito de passagem — embora fosse “portátil” apenas segundo o marketing. O peso do objeto excedia as forças do pequeno corpo que o recebeu com entusiasmo quase religioso. Final dos anos 1980. A expectativa do novo, a promessa de criação, imprimiram na mente infantil um alvoroço que o acompanhará pela vida inteira.
O menino saiu da loja com os olhos acesos e a cabeça fervilhando. Voltou para a casa da avó — lar temporário de tantos sonhos — subindo a ladeira da Pedreira com o pensamento fixo na técnica que sua mãe, mulher de paciência firme e vocação pedagógica sem diploma, havia lhe ensinado. Havia um botão giratório que controlava a entrada da folha de papel. Era preciso girá-lo, inserir o sulfite, puxar uma alavanca para soltá-lo, alinhar bordas com rigor quase matemático, e devolver a alavanca ao ponto de origem antes de girar novamente o botão, até que o papel repousasse perfeitamente, pronto para ser marcado.
Não era apenas técnica. Era iniciação. A mãe lhe mostrara como “bater” letras maiúsculas e minúsculas, como corrigir erros — sobrepondo letras com a coragem de aceitar rasuras — como alternar entre o preto e o vermelho, e até usar a letra “l” como um número “1”, recurso de engenhosidade doméstica que só os iniciados sabiam manejar.
Essa mesma mãe, que não se via como comerciante nem como provedora tradicional, já havia lhe dado a chave da alfabetização. O conduziu por histórias em quadrinhos, entre patos falantes e coelhos espertos, pelas páginas da Disney e da Turma da Mônica. Incentivou-lhe o traço e a narrativa, como quem planta sementes sem cobrar a colheita. A sua herança veio em forma de cultura — múltipla, acessível, generosa.
Hoje, o menino é um homem. E mesmo que os números lhe escapem — em transações, cálculos ou finanças — há nele uma consciência clara da diferença. Não melhor, não pior. Apenas outro. Alguém que lê por prazer, desenha por impulso, canta por alegria, escreve por necessidade. Nenhuma dessas paixões lhe trouxeram riqueza. E isso, talvez, nunca mude. Não será ícone de prosperidade. Não será exemplo universal.
Mas é feliz. Profundamente feliz com o homem que se tornou. E a raiz de tudo isso — a origem silenciosa, mas incontornável — está na mulher que lhe ensinou a bater as primeiras letras e a sonhar com elas.
Ele usava uma gravata torta, do tipo que um estagiário aprende a dar no terceiro mês de trabalho, quando já não quer parecer um estagiário. Sentou-se na mesa do café como se tivesse vencido uma maratona, jogando as costas na cadeira com a satisfação meticulosa de quem acha que merece estar ali — e talvez achasse mesmo.
O reencontro, proposto por ele com um “vamos marcar aquele café!”, começou com os clássicos tapinhas no ombro e as piadas internas dos tempos da faculdade, quando os dois escreviam reportagens para o jornal universitário com a mesma pretensão de salvar o mundo — e a mesma ignorância sobre como funcionava o mundo que queriam salvar.
Mas agora só um deles estava salvo.
“E aquela revista que você tava?”, ele perguntou, mexendo o açúcar com a colher como quem mexe no passado do outro. Quando ouviu que a revista havia fechado, arregalou os olhos por um instante — rápido demais para ser sincero, lento demais para parecer educado.
Então veio o sermão. Disfarçado de ironia, com um humor involuntariamente cruel, desses que se camuflam no tom de piada para poderem escapar impunes. Falou sobre planejamento de carreira, sobre oportunidades que se criam, sobre como o fracasso, no fundo, é uma falha de caráter bem mascarada.
Ele se despediu satisfeito. Tinha feito a sua boa ação do dia — e ainda por cima com graça. Saiu dali com a sensação de que havia dito algo importante. Um homem convencido de sua lucidez é sempre o mais perigoso dos profetas.
No dia seguinte, o artigo: uma longa coluna sobre desigualdade, sobre jovens talentos esquecidos pelo mercado, sobre a necessidade de um jornalismo mais humano. Escreveu, com a solenidade de um bispo social-democrata, que ninguém deveria ser julgado por sua condição momentânea. Era, para todos os efeitos, um texto com o qual o seu antigo colega desempregado podia concordar — exceto por um detalhe: o autor não acreditava naquilo quando não estava escrevendo.
Na prática, o discurso social servia apenas como um adorno ideológico, um cinto moral que se usava na cintura da consciência para parecer mais elegante. Era preciso estar desempregado para saber que o pior da pobreza não era a falta de dinheiro, mas a falta de escuta. A sensação de se tornar invisível para aqueles que, há pouco, dividiam a mesa do bar e os sonhos juvenis.
Ninguém supera uma fase ruim apenas com planilhas e conselhos motivacionais. Supera-se com solidariedade silenciosa, com a dignidade de uma escuta honesta, com a delicadeza de não fazer perguntas demais. O desempregado, o quebrado, o frustrado — ele não quer ser salvo por um messias cínico. Ele só quer ser tratado como alguém que ainda pertence à vida.
É curioso como os bem-sucedidos acham que o fracasso alheio é sempre uma escolha mal feita. Talvez porque admitir o contrário signifique encarar o quanto sua própria ascensão dependeu de fatores externos — contatos, empurrões, silêncios coniventes. O mercado editorial, por exemplo, nunca foi uma meritocracia: é um clube. E quem nega isso costuma estar dentro.
O que falta, talvez, não seja um plano de carreira, mas um plano de convivência. A pobreza — mesmo que temporária — desmoraliza quem a atravessa não apenas pela dificuldade material, mas pela vergonha imposta. O fracasso alheio parece nos incomodar porque nos lembra que o chão ainda está ali, e que é mais perto do que gostamos de imaginar.
O colega bem-sucedido acreditava em grandes teorias e diagnósticos sociais, mas não sabia o que fazer diante de um ser humano em crise. E isso diz muito mais sobre ele do que qualquer editorial que venha a escrever.
A modernidade ensinou-nos a duvidar das coisas. Confiamos no discurso, desconfiamos do silêncio; valorizamos o gesto grandioso, desprezamos a repetição modesta. Contudo, a verdade — se ainda é lícito usar essa palavra — raramente se revela no que é barulhento. Ela habita o que não se anuncia. E nisso, talvez, os objetos tenham nos compreendido melhor do que nós mesmos.
Uma xícara com a borda lascada pode carregar mais humanidade do que um romance inteiro de frases bem compostas. Nela está depositada a memória — não apenas como lembrança, mas como forma de vida sedimentada. É o que Nietzsche poderia ter chamado de um hábito da alma. Em seu uso diário, sem exaltação nem fanfarra, revela-se o que resta da autenticidade num mundo entregue à encenação.
A crítica ao sentimentalismo barato — ou pornografia emocional — não é uma recusa da emoção. É, antes, o reconhecimento de que o afeto genuíno exige tempo, hesitação, ambiguidade. Ao contrário da catarse instantânea prometida pela cultura de massas, a emoção verdadeira é desconfortável. Ela não se presta ao espetáculo porque não é redutível à fórmula. Ela exige a coragem do não dito.
A cultura contemporânea, porém, vive sob o império da transparência afetiva. A literatura, a música, o cinema — tudo parece concebido para produzir uma reação previsível, como se o valor de uma obra se medisse pela intensidade da lágrima que provoca. O que se perde nesse processo é o próprio espaço interior, onde a emoção se elabora de forma não-linear, onde o silêncio também é fala.
Talvez essa ânsia por comoção tenha origem no vazio de sentido. Um mundo desprovido de transcendência precisa dramatizar a imanência. Mas a tentativa de substituir o sagrado pela emoção produz apenas uma paródia do sagrado — algo que emociona sem transformar. A pornografia emocional é, nesse sentido, um sintoma de desespero espiritual.
Há, porém, uma resistência silenciosa. Está nos escritores que recusam o excesso. Em Tchekhov, o silêncio vale mais que a lágrima. Em Thomas Mann, a emoção infiltra-se como o vento sob a porta — imperceptível, mas real. Em ambos, há uma aposta no detalhe como portador de verdade. A colher no prato, o gesto repetido, a pausa entre duas palavras — são aí que se esconde o que a linguagem não pode dizer.
Isso nos obriga a repensar o próprio ato de escrever. Escrever não é manipular emoções. É oferecer um espaço onde elas possam acontecer. O bom escritor não se impõe como maestro de um concerto emotivo; ele se retira, como um anfitrião discreto, e deixa que o leitor descubra sozinho o que há de verdadeiro numa cena comum.
Essa retirada exige uma forma de humildade que é rara num tempo em que o narcisismo se tornou virtude. Exige também uma visão trágica da vida: o reconhecimento de que há dores que não se resolvem, afetos que se contradizem, momentos que passam sem redenção. E, sobretudo, exige a disposição de confiar no pequeno. Pois é no pequeno — nas xícaras, nos silêncios, nos gestos esquecidos — que o real se manifesta.
Ao fim, talvez reste apenas isso: uma recusa ativa à encenação. Não como gesto de pureza moral, mas como forma de resistência ontológica. Num mundo saturado de emoção performática, a contenção torna-se subversiva. E uma xícara lascada pode ser, sem exagero, o último reduto do humano.
por alguém que ainda prefere pensar devagar
A maioria das pessoas lê poesia como quem folheia panfletos: busca a mensagem, a lição, a moral da história. E quando não a encontra, acusa o autor de obscuro, hermético, irônico demais — como se ironia fosse um defeito. Esse impulso redutivo não é um problema de leitura, mas de formação espiritual: vivemos num tempo em que quase ninguém sabe mais escutar uma forma.
É nesse ambiente hostil à linguagem que a poesia de Paulo Leminski aparece com um brilho paradoxal. Brilho discreto, quase indiferente ao aplauso. Leminski não quer ser amado — quer ser ouvido. E para ouvi-lo, é preciso reaprender algo que nossa cultura há muito esqueceu: que a linguagem não serve apenas para dizer o mundo, mas para dizer-se mundo.
Reler Leminski hoje é reencontrar a presença do logos em estado bruto: a palavra antes da interpretação. Seus poemas curtos não são resumos; são proposições filosóficas na forma de murmúrio. Ao contrário da verborragia acadêmica ou da poesia inflacionada de sentimentos, ele escolhe a via mais difícil: dizer pouco, para que cada sílaba seja uma decisão ontológica. E isso, que deveria ser evidente, passa despercebido.
Tomemos o poema:
isso?Muitos lerão isso como um jogo. Outros, como um gracejo pós-moderno. Estão errados — ou melhor, estão cegos à gravidade do gesto. Esse poema não é uma brincadeira. É uma síntese existencial. Está ali o espanto primordial do ser lançado no tempo: a surpresa do nascimento, a violência da finitude, a velocidade da experiência e a impotência da linguagem. Leminski condensa em quatro palavras uma angústia milenar — e o faz com a leveza de quem sabe que, no fim, nenhuma angústia é original.
aqui?
já?
assim?
Sua poesia, ao contrário do que pensam os cultores da espontaneidade, não é produto do improviso. É fruto de uma inteligência cultivada com disciplina: há latim ali, há Zen, há Nietzsche, há Bashô, há concretismo e haicais, há erudição e sensibilidade histórica. Mas tudo isso é destilado até chegar ao essencial — ao que permanece quando a linguagem se esgota de si mesma.
O poeta que muitos chamam de "malandro" é, na verdade, um monge disfarçado. Um monge que se move por dentro do caos urbano com a tranquilidade de quem medita em trânsito. Seus poemas são rituais privados executados em público. Não há sentimentalismo, não há retórica de sofrimento, não há pedido de empatia. Há forma. E a forma, se bem compreendida, é sempre uma ética.
Por isso mesmo, não se pode ler Distraídos venceremos sem perceber a mudança de temperatura. Ali, Leminski já não é apenas o virtuose da concisão, mas o homem que retorna do sofrimento com uma nova técnica: a rarefação. Ele mesmo escreveu que buscava a “abolição da referência”, e isso não é escapismo — é alquimia poética. Transforma a dor em música silenciosa. Não a comunica, a transmuta. É o contrário da confissão.
Há um ponto aqui que vale sublinhar. A maior parte da poesia contemporânea oscila entre o sentimentalismo kitsch e o formalismo estéril. Leminski escapa disso com uma elegância brutal. É como se dissesse ao leitor: “sinta, mas não se derrame; pense, mas não se prenda à ideia”. Essa exigência formal vem de uma consciência aguda do tempo — de sua brevidade, de sua desordem, de sua indiferença. E é justamente por compreender o tempo que Leminski constrói uma poética da pausa. Um poema, nele, é sempre uma interrupção. Não no fluxo da linguagem — mas no automatismo do mundo.
Tampouco se engane com seu humor. O humor em Leminski é um índice da sua inteligência trágica. Ele sabe que a piada, quando bem feita, revela mais que mil diagnósticos sociológicos. Isso é algo que o leitor sério precisa reaprender: o riso não é inimigo da verdade. Muitas vezes, é sua única forma aceitável.
arte do cháEste poema é um tratado espiritual condensado. A cerimônia do chá, na tradição zen, exige atenção plena, gestos conscientes, economia absoluta. Leminski captura tudo isso em um convite informal — e termina com uma frase que parece banal: “ficou por isso mesmo”. Mas aí está a beleza. Tudo ficou por isso mesmo — e isso basta. Esse é o ponto em que a poesia toca a sabedoria: quando abandona o desejo de provar algo.
ainda ontem
convidei um amigo
para ficar em silêncio
comigo
A trajetória final de Leminski, marcada pela decadência física, não apaga sua lucidez — a torna mais rara. Em seus últimos versos, a linguagem já não é mais instrumento de expressão, mas vestígio de algo que resiste ao colapso: a integridade da forma diante do caos interior.
tudo o que duramente passa
tudo o que passageiramente dura
Esse tipo de formulação não nasce do desespero, mas da aceitação. E aceitar não é resignar-se. É compreender que viver, como ele diz, “não tem cura” — e seguir escrevendo como quem doma o incurável com precisão cirúrgica.
Leminski não quis ser um modelo. E é por isso mesmo que se tornou um. Seu exemplo não está no que pensava, mas em como escrevia. Ele não propõe ideias: propõe gestos de linguagem. E esses, ao contrário das ideias, são difíceis de falsificar.
Hoje, sua obra cintila nas redes como se tivesse sido feita para isso. Mas é apenas um acaso — ou, como ele escreveu:
acaso é este encontroPode ser. Mas esse acaso, em Leminski, nunca é gratuito. É sempre um convite à atenção. E a atenção, nos dias que correm, é talvez a última forma legítima de resistência.
entre o tempo e o espaço
mais do que um sonho que eu conto
ou mais um poema que eu faço?
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