A língua Latina, conhecida por sua influência duradoura na cultura e na história, tem uma origem rica e complexa que remonta aos primeiros habitantes da região central da península Itálica. Sua evolução ao longo dos séculos reflete não apenas as mudanças linguísticas, mas também as transformações sociais, políticas e culturais que moldaram o mundo antigo e o medieval.

A origem do Latim está ligada aos povos indo-europeus que migraram para a Europa há milhares de anos. Esses grupos migratórios se estabeleceram na região que mais tarde seria conhecida como Itália, trazendo consigo suas línguas e tradições. O Latim inicialmente emergiu como uma das muitas línguas faladas na península Itálica, com várias variantes regionais.

O período arcaico do Latim, conhecido como Latim Arcaico, é relativamente obscuro devido à falta de registros escritos. No entanto, algumas inscrições e fragmentos de textos sobreviventes fornecem insights sobre as características dessa fase inicial da língua. Durante esse período, o Latim foi influenciado por outras línguas faladas na região, como o Etrusco e o Grego, e passou por mudanças fonéticas e gramaticais significativas.

Foi durante o período republicano romano que o Latim começou a se consolidar como uma língua padrão e a se espalhar além das fronteiras da península Itálica. A expansão de Roma trouxe consigo a disseminação do Latim através das conquistas militares e da administração romana, estabelecendo-a como a língua franca do Mediterrâneo ocidental.

O Latim Clássico, a forma mais prestigiosa e padronizada do Latim, emergiu durante o período imperial romano. Esta era foi marcada por um florescimento da literatura, filosofia e ciência em Latim, com escritores como Cícero, Virgílio e Ovídio deixando um legado duradouro. O Latim Clássico foi formalizado através de gramáticas e dicionários, e tornou-se a língua da administração, do direito e da cultura em todo o império.

No entanto, com o declínio do Império Romano e a ascensão do cristianismo, o Latim começou a passar por mudanças significativas. O Latim Tardio, também conhecido como Latim Vulgar, surgiu como uma forma simplificada e evoluída do Latim Clássico, adaptada às necessidades do cotidiano e à comunicação entre os povos de diferentes origens linguísticas. Essa evolução levou à formação das línguas românicas, como o Francês, Espanhol, Italiano, Português e Romeno, que são descendentes diretos do Latim.

Apesar de ter perdido sua posição de prestígio como língua dominante na Europa, o Latim continuou a exercer uma influência significativa em áreas como a religião, a academia e o direito. O uso do Latim na liturgia da Igreja Católica Romana e nas universidades medievais ajudou a preservar a língua e a garantir sua continuidade ao longo dos séculos.

Hoje, o Latim é estudado principalmente como uma língua clássica e acadêmica, mas seu legado perdura em muitos aspectos da vida cotidiana. Termos e expressões em Latim são amplamente utilizados em campos como medicina, direito, ciência e filosofia, refletindo a duradoura influência dessa língua antiga.

A jornada do Latim desde suas origens obscuras na península Itálica até sua influência duradoura no mundo contemporâneo é uma testemunha da capacidade da linguagem de transcender fronteiras geográficas e temporais. Sua história complexa e multifacetada continua a fascinar e inspirar estudiosos e amantes das línguas em todo o mundo, destacando o papel fundamental que o Latim desempenhou na formação da civilização ocidental.


Saio de casa crendo-me atrasado. Penso em procurar um moto-taxista que me leve até a Praça do Cinquentenário a tempo de pegar o ônibus para a faculdade. Ao descer a ladeira de Marciano, no entanto, vejo o ônibus que desconfio ser do CETEP.

Dei a volta até chegar à porta do veículo. Atrapalho-me nos restos do que um dia já foi uma carroça. Pergunto ao motorista:

- Motô, esse ônibus vai até o CETEP?

- Vai.

- Pode me dar uma carona?

- Entra aí.

Subi no veículo e dei de cara com os olhares curiosos dos alunos. Que diabos seria aquele homem de meia idade, de mochila nas costas e pedindo carona?

Lá dentro estava quente, mas o desconforto foi aumentando após alguns minutos.

O motorista só deu partida às 12h e 40 min. Ia parando em cada ponto em que grupos de alunos estava à espera.

O último local de coleta dos discentes foi em frente ao Colégio Dom Bosco. Subimos pela Borges de Barros e descemos pela rua dos Correios. Alguns alunos seguiam em pé por falta de lugar para sentar.

Olhei para toda aquela juventude bonita e me dei conta de que a primeira vez que fui até o espaço do CETEP, na época em que ainda era chamado de Escola Agrotécnica Estadual Democrática Chico Mendes, nenhum daqueles alunos havia nascido. Agora eu voltava como professor universitário.


José Fagner Alves Santos


A obra do renomado escultor brasileiro Amilcar de Castro é um convite à reflexão profunda sobre a interação entre forma, contexto histórico e transformação cultural. Ao explorar suas esculturas, como aquelas exibidas na exposição do Museu Brasileiro de Escultura (MuBE) em São Paulo, somos convidados a mergulhar em um universo onde a síntese geométrica encontra-se em constante diálogo com a fluidez da experiência humana.

A visita à exposição, descrita por Henrique de Carvalho em seu artigo, revela não apenas a grandiosidade das esculturas de Amilcar de Castro, mas também a delicadeza com que o museu tratou das questões relacionadas à pandemia. Essa experiência inicial ressalta a importância do contexto contemporâneo na apreciação da arte, evidenciando como fatores externos podem influenciar nossa interpretação das obras de arte.

Ao adentrar o espaço expositivo, somos confrontados com esculturas monumentais, como aquela que se destaca verticalmente contra o vão horizontal do museu. Esta escultura, deslocada de Uberaba para São Paulo, lembra-nos a influência do Movimento Neoconcreto, do qual Amilcar de Castro fez parte. Essa associação entre as obras de Amilcar e o Neoconcretismo nos convida a explorar não apenas a forma física das esculturas, mas também sua relação com os ideais estéticos e filosóficos do movimento.

A síntese é um elemento central na obra de Amilcar de Castro, como destacado por Carvalho. Suas esculturas, compostas frequentemente por uma única chapa de metal cortada e dobrada com precisão, capturam a essência da forma tridimensional de maneira surpreendentemente simples. Esse processo de síntese, que transforma uma matéria bruta em uma forma refinada, convida-nos a refletir sobre a relação entre a criação artística e a transformação cultural.

No Manifesto Neoconcreto, proposto por Ferreira Gullar em 1968, encontramos ideias que ressoam na obra de Amilcar de Castro. A arte é concebida como participativa, envolvendo o espectador como coautor da experiência estética. Essa abordagem desafia a noção tradicional de arte como algo estático e distante, aproximando-a da vida cotidiana e das experiências individuais.

Ao comparar as esculturas de Amilcar com as de outros artistas do Neoconcretismo, como Lygia Clark, percebemos diferentes abordagens em relação à participação do espectador. Enquanto Clark propunha esculturas manipuláveis, conhecidas como "bichos", Amilcar convida-nos a explorar as possibilidades implícitas na forma fixa de suas esculturas. Essa diferença na abordagem nos leva a considerar como a arte pode ser um veículo para a reflexão interior, mesmo quando aparentemente estática.

A rigidez aparente das esculturas de Amilcar de Castro revela-se como uma ilusão ao observarmos as obras de diferentes ângulos. Essa fluidez percebida, conforme descrito por Carvalho, nos convida a considerar como a forma pode ser transformada pela nossa própria perspectiva. Essa reflexão nos leva além da simples apreciação estética, conduzindo-nos a uma compreensão mais profunda da interação entre forma e experiência humana.

Além da abordagem formal, as esculturas de Amilcar de Castro também nos convidam a refletir sobre as transformações culturais mais amplas. O processo de manipulação da matéria bruta, descrito por Carvalho como análogo às transformações na cultura humana, sugere uma visão otimista da capacidade de mudança e renovação. Assim como as esculturas de Amilcar evoluem a partir de uma matéria bruta até se tornarem obras de arte refinadas, a cultura humana é moldada e lapidada ao longo do tempo, resultando em formas únicas e multifacetadas.

Essa reflexão nos leva a considerar o papel da arte na transformação cultural. Assim como as esculturas de Amilcar nos convidam a explorar novas perspectivas e possibilidades, a arte em geral pode desempenhar um papel vital na expansão de nossos horizontes culturais e na promoção do diálogo intercultural.

Por fim, ao examinar a obra de Amilcar de Castro à luz do Movimento Neoconcreto e das transformações culturais mais amplas, somos confrontados com a complexidade da experiência estética e seu potencial para promover a reflexão e a transformação. As esculturas de Amilcar transcendem seu tempo e contexto histórico, convidando-nos a explorar as interseções entre forma, experiência humana e cultura em constante evolução.

Em última análise, a obra de Amilcar de Castro nos leva a reconsiderar nossa própria compreensão da arte e sua relação com o mundo ao nosso redor. Ao mergulhar na simplicidade e complexidade de suas esculturas, somos desafiados a expandir nossos horizontes e abraçar a beleza da transformação cultural.



Na perspectiva de Howe, o surgimento de I. B. Singer, conhecido pelos leitores de ídish como Bashevis, não foi motivo de comemoração. Pelo contrário, marcou o ocultamento de um escritor superior: seu irmão mais velho, Israel Joshua Singer. Nas décadas de trinta e quarenta, era Israel quem se destacava como o principal colaborador do Forward, escrevendo tanto ficção quanto jornalismo, e cujos livros eram traduzidos para os Estados Unidos e Europa. Maximillian Novak, um estudioso de ídish, escreve em seu livro "O Escritor como Exilado: Israel Joshua Singer" que quando o épico romance de Singer, "Os Irmãos Ashkenazi", foi publicado, em 1936, ele foi comparado a Tolstói e mencionado como um futuro candidato ao Prêmio Nobel. Quando ele morreu, de um ataque cardíaco, em 1944, aos cinquenta anos, seu irmão mais novo Isaac era praticamente desconhecido.

Duas décadas depois, Israel Joshua se tornou o "outro" Singer, cuja existência até mesmo os fãs de Isaac muitas vezes se surpreendiam em descobrir. Isso continua sendo verdade hoje. Mas uma nova edição da obra de I. J. Singer agora reúne seis de seus livros — cinco romances e uma memória — em dois volumes de omnibus, cada um com mais de mil páginas. Editada por Anita Norich, uma estudiosa de literatura ídish que fornece introduções e uma extensa bibliografia, a edição marca a primeira vez que alguns dos livros de I. J. Singer estão em circulação há décadas — no caso de um romance, "Leste do Éden", pela primeira vez desde sua publicação original, há mais de oitenta anos. A editora é a Biblioteca do Povo Judeu, um novo empreendimento que visa fazer pela literatura judaica o que a Biblioteca da América faz pelos clássicos americanos. (I. B. Singer, enquanto isso, está na própria Biblioteca da América.)

"Os Irmãos Ashkenazi", seu livro mais lembrado, é uma saga familiar sobre a rivalidade entre irmãos gêmeos, um empresário ferozmente ambicioso e o outro um ocioso encantador. Mas Singer está menos interessado na dinâmica familiar do que na evolução da vida judaica na cidade polonesa de Lodz, um centro do comércio têxtil, em meio às pressões do capitalismo industrial, nacionalismo crescente e comunismo, e à devastação da Primeira Guerra Mundial. Sua grande força como romancista está em retratar como os destinos individuais refletem o movimento da história, e seus trechos mais característicos lidam no plural, como nesta descrição de uma bolha de mercado alimentada pelo crédito em Lodz:

Independente de dinheiro, incendiada pela perspectiva de riquezas rápidas, tornada imprudente pela feroz competição, Lodz fervilhava e se agitava sem sistema ou ordem e com total desrespeito às regras da oferta e demanda. As pessoas tramavam, maquinavam, persuadiam e conspiravam, envolvidas na louca corrida desenfreada da cidade. Era uma existência falsa construída sobre sonhos, artifícios e papel. A única base de realidade e substância eram os trabalhadores.

De repente, tudo parou. Um grande osso ficou preso na garganta de Lodz, e a cidade vomitou tudo o que tinha engolido ao longo de anos de glutonaria desenfreada.

Irving Howe argumentou que a análise abrangente de Israel Joshua Singer sobre a sociedade judaica representou um grande avanço para a literatura ídish. Escritores ídish anteriores haviam sido confortavelmente paroquiais, refletindo a vida cotidiana em anedotas cômicas ou fábulas agridoces. Singer, escreveu Howe, assemelhava-se aos grandes romancistas europeus como Thomas Mann ao ver a sociedade como "um organismo complexo com uma vida própria, um destino que superava e às vezes cancelava a vontade de seus membros individuais."

Quando o trabalho de Isaac Bashevis Singer começou a aparecer em inglês, nos anos cinquenta, esse tipo de realismo social panorâmico estava fora de moda. Após a Segunda Guerra Mundial, escritores mais jovens já não aspiravam mais a explicar como a sociedade funcionava e para onde a história estava indo — talvez porque temiam a resposta. Em vez disso, voltaram-se para dentro, esperando apenas dizer algo autêntico sobre o que haviam vivido e conhecido. Comunicar esse tipo de verdade muitas vezes significava rejeitar a verossimilhança ordinária em favor da fábula e da parábola, da exageração e do absurdo — como os escritores Flannery O'Connor e Ralph Ellison mostraram.

Partindo de um lugar cultural e geográfico muito diferente, I. B. Singer chegou a uma conclusão semelhante à de seu irmão. Em vez de descrever greves e partidos políticos, ele escreveu ficção cheia de fantasmas e demônios, dilemas filosóficos e obsessões sexuais. Na história "Henne Fire", uma mulher conhecida por seu temperamento selvagem se inflama espontaneamente, deixando para trás apenas um pedaço de carvão. Em "A Cafeteria", um sobrevivente do Holocausto insiste que Hitler ainda está vivo e realiza reuniões no meio da noite em uma cafeteria kosher no Upper West Side. No romance "Shosha", ambientado em Varsóvia na véspera da Primeira Guerra Mundial, um narrador semelhante a Singer encontra uma mulher que amou quando eram muito jovens. Quando descobre que ela não cresceu nada desde então, mas permanece mental e fisicamente uma criança, ele decide ficar na cidade para protegê-la, sabendo que isso significa quase certa morte.

Para muitos leitores de ídish, a mistura de fantasia, nostalgia e titilação nas histórias de I. B. Singer representava um retrocesso em relação ao trabalho de seu irmão mais velho. Se o Singer mais jovem apelava mais para os leitores americanos do pós-guerra, era porque a maioria deles já não entendia como era realmente a vida judaica na Europa Oriental antes de ser destruída no Holocausto. O ressentimento crescia à medida que a crescente fama de I. B. Singer ofuscava outros escritores ídish.

Por exemplo, Chaim Grade, que chegou aos EUA como refugiado em 1948, escreveu romances perspicazes e íntimos sobre o mundo religioso de sua juventude. Alguns até foram traduzidos para o inglês. Mas quando ele morreu, no Bronx, em 1982, apenas um pequeno círculo de admiradores reconheceu a perda para a literatura. Mais de vinte anos depois, a viúva de Grade, Inna, foi entrevistada em conexão com o centenário de Isaac Bashevis Singer. Ela ainda estava visivelmente furiosa com o escritor que havia lançado seu marido às sombras: “Eu desprezo profundamente todos aqueles que comem o pão no qual o bufão blasfemo urinou”.

Mesmo hoje, aqueles que podem ler literatura ídish no original — mais frequentemente estudiosos do que falantes nativos — tendem a ser um pouco suspeitos de Bashevis e mais calorosos para com Israel Joshua. Em 2020, a romancista Dara Horn, que tem um Ph.D. em literatura ídish e hebraica, escreveu na revista online Tablet que I. J. Singer era “um romancista muito melhor” do que seu irmão, livre do “romantismo indulgente” deste.

Não é de admirar que a primeira publicação em inglês de Isaac Bashevis Singer, o romance de 1950 "A Família Moskat", seja dedicada efusivamente a Israel Joshua: “Para mim, ele não era apenas o irmão mais velho, mas também um pai espiritual e mestre. Sempre o admirei como um modelo de alta moralidade e honestidade literária. Embora fosse um homem moderno, ele tinha todas as grandes qualidades de nossos ancestrais piedosos.” No entanto, até mesmo esse elogio pode ser lido como uma espécie de provocação, pois, como Isaac sabia melhor do que ninguém, Israel Joshua tinha uma visão sombria da piedade judaica e dos ancestrais cujas vidas foram moldadas por ela — começando por seu próprio pai, um rabino hassídico.

Pinchas Mendel Singer teve o destino incomum de se tornar personagem nos livros de três de seus filhos: a memória de Israel Joshua “De um Mundo Que Não Existe Mais”, a memória de Isaac “No Tribunal de Meu Pai” e “A Dança dos Demônios”, um romance autobiográfico de Esther Singer Kreitman. Dois anos mais velha que Israel Joshua, Esther se casou antes da Primeira Guerra Mundial e se estabeleceu em Londres, onde teve uma modesta carreira literária em ídish. Nos últimos anos, os estudiosos redescobriram os livros e traduções que ela publicou nas décadas de trinta e quarenta.

Todos os irmãos pintam basicamente o mesmo retrato de seu pai — como um homem profundamente devoto que era indiferente a assuntos mundanos, incluindo ganhar a vida. Era a mãe deles, Basheve, quem detinha o controle na família. “Eles teriam sido um casal bem combinado se ela tivesse sido o marido e ele a esposa”, escreveu Israel Joshua. Resistente, temperamental e intelectualmente inclinada, Basheve era uma dona de casa e cozinheira negligente, preferindo muito mais ler os livros devocionais ídish que constituíam a biblioteca da família. Ela era claramente a responsável por criar três escritores, como Isaac reconheceu quando baseou seu pseudônimo ídish em seu nome.

Um episódio-chave na mitologia da família Singer ocorreu quando Israel Joshua era muito jovem, antes que Isaac nascesse. No Império Czarista, que incluía a maior parte da Polônia na época, um rabino era obrigado a passar em um exame de língua russa para exercer funções cívicas e legais — ao contrário das funções espirituais, que exigiam apenas hebraico e ídish. Como a maioria das cidades era muito pobre para empregar mais de um rabino, um homem que queria um bom púlpito precisava ser capaz de passar no teste do governo. Mas Pinchas resistia a tomar lições de russo, vendo-as como uma distração profana. Quando finalmente foi persuadido a contratar um tutor, parou de frequentar após apenas algumas semanas, dizendo que não poderia estar sob o mesmo teto que a esposa do tutor, porque ela não cobria o cabelo com uma peruca, em violação ao costume judaico. Como resultado, Pinchas nunca passou no exame russo, condenando sua esposa e filhos a uma vida de penúria.

Esther conta essa história com um certo respeito relutante por seu pai. Ao fugir de suas lições, ela escreve, “pela primeira vez em sua vida ele se tornou um homem de ação.” Isaac, também, admira seu pai por permanecer fiel às suas convicções, mesmo que “seus cunhados zombassem da piedade de meu pai, do modo como ele se concentrava em ser judeu.”

Israel Joshua, por outro lado, tem apenas desprezo por um homem que “odiava qualquer tipo de responsabilidade”, e pela religião que o transformou em um “sonhador eterno e Luftmensch” — literalmente, um “homem do ar”, o termo ídish para uma pessoa impraticável sem raízes na realidade. Sua memória é em grande parte a história de sua repúdio à passividade e superstição da vida judaica tradicional. Mesmo quando criança, ele escreve, ele “fugia como um ladrão da prisão da Torá, do temor a Deus e do judaísmo”.

Por volta do início do século XX, muitos de seus contemporâneos judeus estavam se rebelando de maneiras semelhantes. À medida que os pogroms e a pobreza tornavam a vida na Europa Oriental cada vez mais insuportável, milhões de judeus emigravam para os Estados Unidos. Milhões mais, especialmente os jovens, abraçavam novas ideologias seculares que lhes ofereciam controle sobre seu destino. O sionismo queria dar aos judeus não apenas um estado próprio, mas um senso de agência e dignidade que havia sido perdido no exílio; como dizia um slogan, os judeus iriam para a Palestina “para construir e serem construídos”.

I. J. Singer foi atraído, em vez disso, para o outro grande movimento de seu tempo: o socialismo, que prometia varrer a superstição judaica e o antissemitismo gentio, bem como a pobreza e a guerra, em uma revolução universal. Quando a Primeira Guerra Mundial estourou, ele já estava suficientemente radicalizado para escapar ao recrutamento do czar e se esconder, como seu personagem Benjamin Lerner, em “Aço e Ferro”. Em 1918, acabando de se casar, Singer e sua esposa, Genia, fizeram o caminho de Varsóvia para a Ucrânia e a Rússia, que estavam experimentando as réplicas da revolução bolchevique. Lá, ele participou da vida literária ídish em Kiev e depois em Moscou. Em 1921, desiludido tanto com a política literária quanto com o curso mais amplo do experimento soviético, o casal retornou a Varsóvia, agora a capital de uma Polônia independente.

Vindo de um escritor não judeu, “Pérolas” poderia ser lido como uma caricatura antissemita. Para Singer, escrevendo em ídish para um público judeu, era uma acusação a um sistema econômico doente que oprimia judeus tanto quanto gentios. Assim como o capitalismo, Spielrein merece morrer, mas continua se arrastando. Ainda assim, “Pérolas” faz seu ponto sem didatismo de linha partidária, apenas com a força das descrições grotescas de Singer.

A história lhe trouxe fama, e não apenas em Varsóvia. Onde quer que os judeus imigrassem, eles levavam consigo a literatura ídish, e “Pérolas” chamou a atenção de Abraham Cahan, o influente editor do Forward. (Mais tarde, foi o Forward que patrocinou o visto americano de I. J. Singer, salvando indiretamente a vida de I. B. Singer também.) I. J. Singer começou a contribuir para o jornal como correspondente estrangeiro, escrevendo um diário de viagem sobre uma viagem de retorno à União Soviética em 1926. Essa experiência também influenciou “Aço e Ferro”, cuja representação da crueldade e preconceito da classe trabalhadora se afastou tanto das convenções do realismo socialista que fez de Singer um pária nos círculos esquerdistas ídish. Indignado, ele declarou que nunca mais escreveria ficção.

Mas essa resolução não durou, e seu próximo romance, “Yoshe Kalb”, provou o maior sucesso de sua carreira. Sendo serializado simultaneamente em Varsóvia e Nova York, e depois publicado como livro em ídish e inglês, em 1932, rapidamente foi adaptado para o palco e se tornou um dos maiores sucessos da história do teatro ídish de Nova York. Quando Singer imigrou para Nova York, em 1934, com sua esposa e filho — outro filho havia morrido no ano anterior —, ele já era uma celebridade local.


Dá para perceber muito sobre as preferências do público ídish ao notar que "Yoshe Kalb" é o menos típico dos romances de I. J. Singer. É o único que se passa no passado tradicionalista, em vez do século XX, e o único em que as forças principais são religiosas e românticas, não econômicas e políticas. No entanto, Singer não apresenta nostalgia alguma ao retratar o mundo de seus antepassados hassídicos.

A história gira em torno de Nahum, um prodígio rabínico que se apaixona pela jovem esposa de seu sogro, engravidando-a. Quando ela morre no parto, Nahum foge. A trama então muda para uma cidade distante, onde conhecemos um misterioso vagabundo chamado Yoshe Kalb. Kalb significa "bezerro", mas o apelido é traduzido como "Yoshe, o Lunático", pois há algo peculiar sobre ele: ele mal come ou fala e parece estar fazendo penitência por um crime desconhecido. Para o leitor, fica claro imediatamente que Yoshe é Nahum, mas no clímax do romance, durante um julgamento para determinar sua identidade, ele se recusa a confirmar ou negar quem é. "Você que está sob julgamento, quem é você?", pergunta o juiz, ao que Yoshe responde simplesmente: "Eu não sei".

Como observa Norich na nova edição, o nome "Yoshe" lembra uma versão ídish de "Jesus", e o personagem pode ser interpretado como um cordeiro sacrificial, assumindo todos os pecados de uma sociedade corrupta e repressiva. Mas o que Singer respeita em "Yoshe Kalb" não é a religião, e sim o mistério por trás dos motivos humanos.

Nos outros romances, os personagens geralmente representam uma classe social ou tipo político. Max Ashkenazi, em "Os Irmãos Ashkenazi", é um empresário impiedoso que simboliza a insaciabilidade do capitalismo. Já Jegor Carnovsky, em "A Família Carnovsky", é um covarde e sádico que representa as contradições insolúveis da assimilação judaica na Alemanha. Yoshe Kalb, por outro lado, parece tão desconcertante em sua resignação quanto Billy Budd, de Melville, outro sacrifício para a injustiça eterna do mundo.

De certa forma, esse mistério torna o romance mais esperançoso, ou pelo menos mais aberto a possibilidades. Na Europa Oriental entre as guerras, quanto mais claramente um escritor entendia a dinâmica da vida judaica, mais sem esperança ela parecia. Isso pode ajudar a explicar por que os romances que Singer publicou após "Os Irmãos Ashkenazi" são menos inspirados e ambiciosos que seu trabalho inicial.

Quando jovem, Singer via os comunistas como motivados por ideais genuínos e acreditava que a Revolução faria camaradas dos poloneses e russos antissemitas. No entanto, quando publicou "Leste do Éden", em 1939, os comunistas aparecem apenas como cruéis comissários, buscadores hipócritas de poder ou tolos infortunados. "A Família Carnovsky", publicado em 1943, tenta lidar com o nazismo, mas, ao contrário do comunismo, este era um assunto que ele não conhecia de primeira mão, e a trama é absurda como um filme de Hollywood. O livro termina com um médico realizando uma cirurgia em uma mesa de quarto para salvar a vida de seu filho adolescente, que atirou em si mesmo no peito depois de matar um espião nazista que havia feito avanços em relação a ele.

Mesmo assim, Singer nunca parou de trabalhar, não importava o quão sem esperança as coisas parecessem. Isaac Bashevis Singer, em suas memórias "Amor e Exílio", escreve sobre o terrível bloqueio criativo que enfrentou depois de se juntar ao irmão em Nova York, em 1935. Seu primeiro romance, a fasmagoria sombria "Satanás em Goray", foi publicado em Varsóvia pouco antes de sua partida, e nos próximos dez anos ele escreveu quase nenhuma ficção, sustentando-se com jornalismo e revisão de provas. Mas ele encontrava conforto ao passar pela casa de Israel Joshua, em Coney Island, e ver seu irmão na janela:

"Ele estava sentado em uma mesa estreita com uma caneta em uma mão, um manuscrito na outra. Nunca tinha pensado na aparência de meu irmão, mas naquela noite o considerei pela primeira vez com curiosidade, como se não fosse seu irmão, mas algum estranho. . . . Seu rosto comprido estava pálido. Ele lia não apenas com os olhos, mas pronunciava as palavras enquanto prosseguia. De tempos em tempos, arqueava as sobrancelhas com uma expressão que parecia perguntar, Como pude ter escrito isso? e imediatamente começava a fazer longos traços com a caneta e a riscar. O começo de um sorriso se formou em seus lábios finos. Ele levantou as pálpebras de seus grandes olhos azuis e lançou um olhar interrogativo para fora, como se suspeitasse que alguém na rua o estivesse observando. Eu sentia como se pudesse ler sua mente: É tudo vaidade, todo esse negócio de escrever, mas já que se faz, deve-se fazer direito."

Foi somente após a morte de Israel Joshua que I. B. Singer voltou a escrever com seriedade, e então as comportas se abriram. Seu longo romance "A Família Moskat", uma homenagem aos Ashkenazis e Carnovskys de Israel Joshua, foi lançado em ídish em novembro de 1945. Nos próximos quarenta e cinco anos, suas publicações em inglês incluíram quatorze romances, dez coleções de contos e uma série de memórias e livros infantis. Mais livros foram traduzidos após sua morte, e continuam a ser lançados; "Velhas Verdades e Novos Chavões", uma coleção de ensaios, foi lançada no ano passado.

O trabalho de Israel Joshua Singer, elaborado nos quinze anos que antecederam o Holocausto, reflete um período em que a civilização ídish estava mais vibrante e moderna do que nunca. Isso também evidencia que, mesmo antes do Holocausto ser concebível, os judeus no Leste Europeu já sentiam o seu futuro se esvaindo. Franz Kafka, escrevendo em alemão, e S. Y. Agnon, escrevendo em hebraico, compartilhavam dessa mesma intuição.

Por outro lado, Isaac Bashevis Singer produziu quase toda a sua obra após esse futuro ter desaparecido. Poucos grandes escritores experimentaram um destino tão singular – trabalhando por décadas enquanto seu público leitor desvanecia gradualmente, cientes de que não teriam sucessores. Contudo, de maneira curiosa, sua escrita foi libertada pelo desaparecimento da esperança. Embora a vida judaica tenha continuado após 1945, a civilização ídish à qual Singer pertencia e sobre a qual escrevia estava além da salvação, e, portanto, além do desespero. Elementos que I. J. Singer sentiu-se compelido a rejeitar em nome da razão e da modernidade – religião, tradição, superstição, esperança utópica – poderiam ressurgir com uma força animadora e assombrosa na obra de I. B. Singer, como se fossem revenants.

Essa dinâmica conferiu à escrita do irmão mais novo uma audácia e uma liberdade imaginativa que ainda ressoam de forma contemporânea. Isaac Bashevis Singer ofereceu uma alegoria de sua situação em sua história "O Último Demônio", sobre um diabo habitando nas ruínas de uma cidade judaica após o Holocausto. "Não há mais necessidade de demônios. Nós também fomos aniquilados. Eu sou o último, um refugiado", declara o demônio. Passando seus dias lendo um livro de histórias ídish que encontrou entre as ruínas, ele se conecta de forma diabólica com o passado. "Enquanto as traças não destruírem a última página, há algo para brincar", escreve Singer. "O que acontecerá quando a última letra não existir mais, é algo que prefiro não pronunciar." ♦




Numa noite distinta, em meio aos luxuosos arredores da Ponta da Praia, em Santos, eu compareci a uma festa sediada na residência de um dos proeminentes produtores de “Seguindo em Frente“. Embora as filmagens dessa produção tenham chegado ao fim meros três meses antes, mal reconhecia em mim o semblante do meu personagem na referida obra. Doze quilos haviam se agregado ao meu corpo, fruto de uma dieta repleta de bifes e donuts, e meu rosto ostentava uma tensão inédita, resultado de uma incessante sucessão de Marlboro e da tentativa de acelerar o ritmo das minhas falas. Sentia-me algo alienado e inadequadamente vestido. O próprio diretor de “Seguindo em Frente” adornava-se com um imaculado terno branco, na companhia de uma jovem que parecia ter a tenra idade de treze anos, em seu braço. Naquele instante, uma convicção desabrochou em minha mente: “Não trabalharei novamente com ele”, ecoou em meus pensamentos, o que, por sua vez, desencadeou um nervosismo imediato, ante a perspectiva de não alcançar os padrões de excelência exigidos para colaborar com qualquer outro profissional. Em busca de um breve refúgio, recorri ao acalento de um cigarro, escondido por detrás de uma sebe de paquissandra.

“Eis Elizabeth”, anunciou ela mesma, quando nossos caminhos se entrelaçaram no trajeto de regresso ao bar. Pronunciava essas palavras como se estivesse aguardando o momento oportuno para proferi-las, como se nossos olhares tivessem se cruzado incessantemente ao longo da noite, embora eu mal a tivesse notado até então. Se não fosse por sua iniciativa, certamente teria passado despercebida aos meus olhos. Contava com vinte e três anos, enquanto eu já ultrapassava a barreira dos vinte e quatro. Firmei-lhe as mãos em um cumprimento, porém, instantaneamente, seu nome escapou-me da memória. “Fui responsável pelas suas vestimentas durante as gravações de ‘Seguindo em Frente'”, elucidou-me. “Costurei suas calças. Estavam excessivamente compridas, então, providenciei um ajuste na bainha, acrescentando um centímetro.” As palavras que proferia não me despertavam grande interesse. “Meia centímetro, para ser mais precisa.”

“Sou-lhe grato. As vestimentas ajustaram-se perfeitamente”, agradeci, embora não compreendesse a relevância da conversa sobre calças. Durante as filmagens de “Seguindo em Frente”, encarnei o papel do filho solitário de um veterano de guerra devastado pelo álcool, envolvido num romance clandestino com a enfermeira de seu pai. As calças permaneceram firmes em minha cintura durante todo o tempo, contudo, jamais prestei-lhes atenção, o que suponho ser a característica distintiva de um bom par de vestuário. Minha mente estava longe de trivialidades durante as gravações de “Seguindo em Frente”, menos ainda em relação a calças, e definitivamente não em mulheres. Ciente de que aquela era minha oportunidade de ingressar no universo cinematográfico, estava determinado a dar o meu melhor.

“Agradeço-lhe imensamente”, repliquei. “Suas palavras são de inestimável significado para mim, verdadeiramente.”

Dediquei-me de forma profissional às minhas obrigações no set de filmagens. A atriz incumbida de dar vida à enfermeira revelou-se excessivamente desagradável comigo. Custou-me um grande esforço conter-me para não confrontá-la. Parecia convencida de sua superioridade, e talvez estivesse certa. Suas falas eram escassas e desinteressantes. Na maioria das vezes, limitavam-se a cenas genéricas em que ela se inclinava sobre o pai enfermo e a momentos de intimidade comigo, cenas estas desprovidas de qualquer faísca de interesse. Todavia, sua presença na tela era cativante. Ela conferiu à personagem uma profundidade singular, valendo-se de seu charme e de expressivos movimentos oculares. Uma artista talentosa, sem dúvida. Acredito que a enfermeira sequer tenha comparecido à festa naquela noite. Caso o tenha feito, evitou-me, o que foi providencial, pois a presença de Elizabeth ao meu lado teria sido perturbadora. A enfermeira era notavelmente bela. Nunca antes contemplara tamanha beleza feminina. Assistir à estreia do filme, meses depois, revelou-se uma experiência penosa, pois grande parte das minhas melhores cenas fora descartada e a dublagem parecia artificial. O filme não alcançou o patamar de excelência esperado. Porém, naquela época, contava com a companhia de Elizabeth.

Após algumas breves considerações sobre as calças, recorri a questionamentos de cunho biográfico, numa tentativa de manter a conversa em andamento, uma vez que um grupo de convidados dava início a uma animada dança, à qual eu não desejava me juntar. Detesto dançar. Considero tal prática humilhante. Prefiro, mil vezes, enfrentar a exposição de utilizar um banheiro diante de uma plateia do que me aventurar na pista de dança. Elizabeth, por sua vez, mantinha-se esbelta e elegantemente ereta, cruzando ocasionalmente os braços sobre o peito. Lembrei-me de uma massagista que, certa vez, discorreu sobre a ciência do toque: “Há uma energia dentro de mim. Às vezes, está viva e ávida. Em outras, está morta. Não transmite nada”. Tal descrição poderia ser aplicada à presença de Elizabeth. Ela era, ao mesmo tempo, marcante e sutil, como uma fina cortina de gaze que, embora protegesse a privacidade, permitia a passagem da luz. Não que ela fosse monótona. Ao contrário, revelava-se perspicaz. Compartilhou comigo detalhes sobre seus pais, proprietários de uma lavanderia numa pequena cidade de Minas Gerais. Enquanto a dança atingia um ápice de frenesi, trocamos algumas reflexões sobre nossas origens modestas. Decidimos migrar para um canto mais tranquilo. Nesse ponto, havia desistido de renovar minha bebida. Acessar o bar tornara-se uma tarefa intransponível, tendo em vista o aglomerado de dançarinos que bloqueava minha passagem.

“Minha cidade natal é tão pequena”, partilhou Elizabeth, “que imperava uma espécie de mandamento – quase como um fenômeno. Se alguém fofocasse a respeito de outrem, a pessoa em questão surgiria na esquina em questão de segundos. E, acredite, isso ocorria com uma frequência impressionante.”

“Minha cidade”, eu disse. “Acho que ninguém conhecia ninguém. Todos simplesmente ficavam em suas casas.”

“Você nunca viu seus vizinhos?”

Minha mente buscava uma sensação, e, quando a encontrou, falei sem pensar, um deslize, um pedaço da minha vida anterior escapando para a luz. “Ninguém olhava para mim”, disse. “Porque meu pai era tão bravo e violento. O bairro todo podia ouvi-lo gritar.” Era fácil falar livremente sobre mim para Elizabeth. Não consigo explicar. Ela libertou algo em mim e varreu os cacos. Eu não corava ou piscava os olhos ou fazia qualquer coisa enquanto falava. Estava dizendo coisas que nunca tinha dito antes, e ainda assim não sentia nada. Essa era o poder de Elizabeth. Essa era sua magia. Eu não sentia absolutamente nada perto dela. “Os vizinhos não podiam olhar para mim, porque tinham pena de mim, mas não faziam nada a respeito, então se envergonhavam.”

“Como no filme, de certa forma”, disse Elizabeth. “Em ‘Seguindo em Frente’.”

Foi nesse momento que me apaixonei por ela.

“Sim”, eu disse. “Fico feliz que tenha notado isso. Trouxe muito de mim para o papel.”

“Eu realmente acreditei que você odiava seu pai tanto quanto o amava.”

“Esse era precisamente meu objetivo – habitar essa dualidade.”

“Muitos atores dependem de seu carisma. Apreciei o quanto você foi sincero.”

“Obrigado.”

Ela falava de maneira econômica e eficaz, como se soubesse que quanto menos palavras se usa, maior é seu impacto. Mas ela tinha uma maneira curiosa de segurar o cigarro, não entre o indicador e o dedo médio, como a maioria das pessoas, mas entre o dedo médio e o anelar. O efeito era tal que ela parecia acenar a mão diante do rosto a cada tragada, como se estivesse escondendo sua expressão. A forma como movia os braços me lembrava de uma marionete. Ela retirou seus cílios postiços quando saímos juntos da casa, e ninguém se despediu, ninguém se importou. A música cessou.

Meu carro estava estacionado ao virar da esquina, sob um poste de luz. O som dos nossos sapatos, lembro-me. E o peso de sua mão na minha, tão leve quanto água. As colinas estavam estranhamente silenciosas, como se as estradas ainda pertencessem à natureza. Eu dirigia a velha Picape da minha mãe. Havia buracos no assoalho. Uma vez, encontrei um ninho de rato embaixo do banco. Eu sabia que me casaria com Elizabeth.

“Eu odeio casamentos”, disse a ela.

Isso ainda é verdade. Eu odeio quando dizem: “Se alguém aqui tiver motivo para se opor a este casamento.” Eu sempre tenho vontade de me levantar e gritar: “Isso será o fim de vocês dois! Quando as estrelas colidem, elas formam um buraco negro!” Não sei de onde tirei esse fato, provavelmente de uma revista.

“Não são muito românticos, não é mesmo,” disse Elizabeth.

Paramos para tomar uma torta em um antigo restaurante afastado, já no Gonzaga.

Pode ter havido uma vida melhor para mim se a mulher com quem me casei fosse mais interessante. Mas sei por que a escolhi, é claro. Ela era, como um jornalista colocou, “uma coisa brilhante em branco” em meu braço. Ela não brilhava demais. Não era uma distração. Ela entendia que eu precisava de um espaço limpo ao meu redor, um lugar vazio onde pudesse ouvir meu eco contra as paredes. Essa era Elizabeth: ela era meu vazio.

José Fagner Alves Santos



“Tem um cara chamado Márcio que mora nesta rua?”

O cabelo da garota estava puxado para cima em um penteado curto, estilizado com baby hairs e cachos de gel. Seus lábios brilhavam como se ela tivesse acabado de comer frango. Lea queria rir, mas sabia que isso seria absolutamente errado. Shirlei havia parado antes de subir os degraus da varanda.

“Não conheço nenhum Márcio.”

“Ah, ele me deve dinheiro”, disse Shirlei, franzindo os olhos para o colo de Lea. “Sei que não é verão e você está aí em cima lendo um livro?”

Lea revirou os olhos e o pescoço. “E d-daí?”

“Sobre o que é o livro?”, disse Shirlei, suavizando repentinamente sua voz.

“Acabei de começar.”

“Sua mãe e seu pai estão em casa?”

“Não, é minha prima mais velha.”

“Leia um pouco pra mim.”

“L-l-ler para você?”

“Foi o que eu disse, não foi?”

“Consigo ler bem na minha cabeça, mas não em voz alta”, disse Lea.

Shirlei subiu até a varanda e sentou-se ao lado dela. “Não me importo se você ficar gaguejando. Veja, eu sou o oposto – quando estou lendo, parece que meu cérebro gagueja – mas consigo falar normalmente.”

“Em que série você está?”, perguntou Lea.

“Vou para o nono, mas deveria estar no décimo primeiro. A professora na Escola Estadual age como se não pudesse me dar um ponto, mas não quero falar sobre isso. Leia a história.”

“Bem, isso se passa na Inglaterra durante a Primeira Guerra Mundial”, disse Lea. “E eu estou indo para o nono ano.”

“O.K., isso é legal”, disse Shirlei enquanto chupava os dedos. Ela sugava os dois dedos ao lado do polegar e balançava a cadeira de balanço com o pé. “Tudo o que precisamos é de uma dessas coisas de pendurar.”

“Que coisas de pendurar?”

“Tipo o que as pessoas no Havaí deitam – ah, elas penduram no meio de duas árvores.”

“Ah, uma rede.”

“É”, disse Shirlei. “Precisamos de uma rede.”

A coisa miraculosa era que, ao contrário do que acontecia na escola, a voz de Lea ficava mais clara e firme enquanto ela lia. Ela não queria mais parar de ler. Ou estar longe do sopro suave da respiração de Shirlei. Ela não queria que a pressão do pé de Shirlei envolvendo sua canela terminasse, nem deixar de ouvir o som determinado de Shirlei chupando os dedos. Ela também não queria que sua mãe chegasse e agisse como uma louca. Joana não gostava de estranhos em sua casa.

“Minha mãe vai chegar daqui a pouco”, disse Lea.

“Entendo”, disse Shirlei.

Ela se levantou e esticou os braços compridos, revelando uma barriga estreita e musculosa conforme sua blusa subia. Ela passou os dedos pelo cabelo, tirou o gloss do bolso e passou nos lábios.

“Bem, foi real, garota”, ela disse, e desceu os degraus pulando.

Lea estava cansada de não ter amigos e ser solitária, de não ter ninguém que pudesse entendê-la. Ela se levantou para seguir Shirlei.

“Você pode voltar”, disse ela. “Mas apenas entre nove e três. Se você ver um Buick branco na entrada, passe reto – ah, e nunca nos fins de semana.”

“O.K. Você gosta de Ki-suco e salgadinhos?”

“Quem não gosta?”

Shirlei ergueu o dedo do meio e seguiu viagem. Joana não aprovaria. Ela, curiosamente, havia se tornado mais tranquila. Talvez fosse porque seu terceiro marido era um bom homem. Ele ia à igreja, trabalhava no correio e tinha recebido um grande cheque de indenização alguns anos atrás. Suspirando, Lea entrou em casa para dizer a Carla que ia andar de bicicleta, mas Carla ainda estava trancada no quarto de visitas com Fred. Eles teriam que parar com aquilo em breve.

“Estou indo dar uma volta de bicicleta”, ela avisou enquanto continuava saindo pela porta dos fundos.

Desprendeu a bicicleta e deslizou da garagem para a rua. Ela só daria algumas voltas e retornaria, tiraria um tempo para si antes dos adultos chegarem em casa.

“Ele é um bom homem”, Joana deve ter dito mil vezes sobre Rogério, depois de antes dizer que não queria outro homem em sua vida.

Lea teve que admitir que, nos últimos dois anos, desde que Rogério apareceu, Joana mal gritava ou a chicoteava. Ela estava ocupada demais no colo de Rogério, mexendo em seus cabelos ou massageando seus pés. Outra coisa era que ele mantinha Joana muito tempo fora. Rogério cuidadava da sonorização de um clube aos fins de semana, e Joana sempre ia com ele. Seu nome de DJ era Roger. Isso divertia Lea. Roger costumava caminhar pela casa cantando, aquecendo sua bela voz. Ele cobria a boca com a mão, fazendo parecer que estava falando em um rádio AM: “Você está ouvindo Roger, o melhor DJ. Continue dançando.” Não, Roger não era tão ruim.

Depois de várias quadras, Lea girou sua bicicleta e deu meia volta para o seu quintal. Ela podia ouvir as batidas do potente sistema de som dele. Todas as noites, ele chegava ligando sua música bem alto. Anitta, Ludmila, Alok, Pablo Vittar – era sempre algo nesse estilo. No momento, ele estava tocando “Show das Poderosas” e Lea podia ouvi-lo cantar antes de abrir a porta. Joana estava dançando de meias enquanto Roger verificava uma panela no fogão. Ele avistou Lea, olhou sinceramente em seus olhos e começou a latir como um cão raivoso. Ela não queria rir, mas não pôde evitar. Essa era a diferença entre ele e o namorado anterior da sua mãe: Roger não se importava em parecer bobo.

“Garota, se prepare para uma salada de macarrão, salsicha italiana em um pão de batata e suco de graviola”, disse Roger. “E olhe ali embaixo para aquele melão gigante que eu comprei.”

Ele também era um cozinheiro muito melhor do que Joana.

“Estou esperando minha amiga”, disse Lea.

“O.K.,” Carla disse. “Namorado ou namorada?”

“Garota, óbvio”, disse Lea.

Na manhã seguinte, ela ficou perto de casa o dia todo, mas Shirlei não apareceu. Se Carla lembrava, não mencionou. Lea não estava só envergonhada, mas chocada, embora isso não a impedisse de ir para a varanda verificar se sua amiga havia chegado várias vezes durante os dias que se seguiram, até Carla gritar com ela para parar de entrar e sair. Lea escolheu ficar do lado de fora, e por volta das duas horas ela achou que não fazia sentido Shirlei aparecer depois daquele horário. Foi dar uma volta de bicicleta para clarear as ideias.

No jantar, Roger disse: “A garota está quieta esta noite.”

Joana pôs o garfo de lado. “Algum problema, Leandra? Você e Carla estão se dando bem?”

Lea assentiu.

“Você deve ter se cansado andando de bicicleta ao meio-dia”, disse Joana. “Vai acabar ficando negra feito um trabalhador de roça. Me lembro de…”

Joana mexeu na salada de batata mas não comeu, nem continuou seu pensamento. Ela tinha ganhado peso desde que parou de fumar e começou a comer toda a boa comida de Roger. Uma noite, Lea a flagrou parada na frente da pia, enfiando um pedaço de bolo de zebra na boca. Ela ficou estática como um ladrão.

“O que você estava dizendo?”, Roger perguntou.

“Eu esqueci”, disse Joana.

“Você está bem, querida?” ele perguntou a Lea.

“Tudo bem”, mentiu ela.

No dia seguinte ela reparou uma garota se aproximando.

“Você demorou a aparecer”, Lea gritou, um tanto afoita.

“Você deve ter sentido minha falta”, disse Shirlei.

Lea revirou os olhos, mas estava curiosa sobre o conteúdo da sacola que a garota trazia.

“Ufa – podemos entrar? Está quente pra caramba aqui fora”, disse Shirlei.

“Deixe-me verificar”, disse Lea.

Lea tinha certeza de que Carla não se importaria, mas ela não queria arriscar, então entrou na casa e, encontrando a sala da frente fria e vazia, fez sinal para Shirlei. Elas foram na ponta dos pés até o quarto de Lea.

“Garota, você tem muita sorte – conseguiu seu próprio quarto. Às vezes nem tenho minha própria cama.

Shirlei descarregou as batatas fritas picantes e azedas, dois pacotes de fandangos, além dos pacotes de Ki-suco e Tang na penteadeira de Lea. Era como se ela gostasse de tudo que Lea gostava ou de alguma forma tivesse lido seus pensamentos.

“Se importa se eu me servir dessas batatas fritas?”

“Vá em frente, garota”, disse Shirlei. Ela estava de joelhos no armário e parecia mais interessada em explorar as coisas de Lea do que em comer. “Todos esses sapatos… ah… você deveria me dar alguns. Qual número você calça?

“Trinta e seis”, disse Lea, mas Shirlei já estava tentando calçar um par de saltos vermelhos baixos que a filha adulta de Roger, Natasha, havia lhe enviado.

“Droga”, disse Shirlei. “Malditos pés. Eu calço trinta e oito – meu pai tem pés grandes. Não entendo como posso ser tão magra e ter pés tão compridos. Eu poderia, ao menos, saber jogar basquete para equilibrar essa situação.”

Lea começou com a batata. “Você ainda tem tempo para aprender”, disse ela para encorajar a garota.

“Obrigada, amiga.”

“Eu sou sua amiga?”

Shirlei assentiu e sentou-se bem perto. O pescoço de Lea estava esquentando. Por alguma razão estúpida e embaraçosa, seus olhos se encheram de água que escorreu pelo seu rosto. Shirlei beijou-lhe a testa, as bochechas e depois os lábios; Lea sentiu o gosto duplo de suas lágrimas. Elas se beijaram e soltaram um pequeno gemido – “Hum” – antes de se beijarem mais um pouco. Até que, Shirlei recuou.

“Você quer que eu vá embora?”

“Não, a menos que você queira”, disse Lea.

“Você está tendo pesadelos?”

“Sim”, disse Lea. “Às vezes.”

“Eu tambem, amiga.”

“Legal. Eu trouxe uma coisa para você.

Shirlei sentou-se ao lado de Lea no balanço e deixou cair o pacote em seu colo: brilho labial, chiclete, salgadinhos, bolos Zebra, mini barras de chocolate e uma garrafa rosa choque com energético. Lea pegou o energético e colocou o saco de volta nas mãos de Shirlei.

“Amiga, não aguento tudo isso.”

“Sim, você aguenta, amiga. Eu comprei para você.

Lea tirou o lacre do energético e começou a beber. As duas ficaram olhando para o horizonte por um tempo.

“Que tal eu fazer algo com essa sua cabeça?” Shirlei disse. “Todo esse cabelo lindo e você prendendo numa rabo de cavalo como um bebê.”

Lea assentiu e num instante estavam no quarto dela. Shirlei estava sentada na cadeira e Lea no chão, entre os joelhos de Shirlei.

“Uau”, disse Shirlei, esticando uma mecha de cabelo passando pelo sutiã de Lea.

“O da minha prima vai até a cintura, e não cacheia como o meu”, disse Lea.

Shirlei parou no meio da escovação e se inclinou para o lado.

“Garota, você não seria capaz de me dizer absolutamente nada se meu cabelo descesse até a cintura. Eu estaria muito ocupada sacudindo-o.”

“Assim?” Lea perguntou, jogando a cabeça.

Shirlei arrancou um lenço da cômoda de Lea e pendurou-o na cabeça. “Mais assim”, disse ela, e começou a chicoteá-lo de um lado para o outro, levantando a perna para fazer a bunda pular. Elas riram tanto. Finalmente, Shirlei pegou a escova novamente, mas não voltou a trabalhar no cabelo de Lea. Em vez disso, ela olhou para Lea pelo reflexo no espelho.

“Posso te contar uma coisa?”

“Claro.”, disse Lea.

“É algo que aconteceu comigo no ano passado. Agora, você realmente quer ouvir isso?

“Garota, se você não se apressar…”, disse Lea, levantando-se do chão.

“Então, dona Telma me mandou para a diretoria porque ela disse que meu shorts era muito pequeno, e o diretor precisava ver aquilo. Entrei no escritório e ele parou o que estava fazendo e franziu a testa para mim. Ele disse: ‘Venha aqui, criança. Venha até a mesa.

“Fui até lá e, de repente, ele enfiou a mão entre as minhas pernas. Minha respiração saiu de mim. Você simplesmente não espera que nenhum homem assim faça isso com você. Mas parece que pisquei e a mão dele sumiu. Seu rosto estava normal e tudo mais. Ele estava tipo, ‘Você não quer andar por aí com isso. Você fará com que aqueles nóias nojentos pensem todo tipo de coisa sobre você. Agora, peça à dona Ninha para deixar você ligar para sua avó para vir te buscar. E não use mais esse tipo de roupa aqui na escola’.

“Você não disse nada para ninguém?” Lea perguntou.

“Quem iria acreditar em mim? Às vezes acho que inventei, porque aconteceu muito rápido. Outras pessoas já me incomodaram antes, mas fizeram isso com os dedos ou queriam que eu tocasse nelas. Ele apenas me tocou como se estivesse verificando minha temperatura lá embaixo ou algo assim. Você acha que isso conta?


Lea não sabia o que dizer, então não respondeu. Shirlei ainda estava olhando para si mesma. Lea olhou para o reflexo, mas não conseguiu identificar a expressão de Shirlei. Ela também não podia nomear a sua própria. Shirlei tinha coisas muito boas, como a pele amarelada e orvalhada e os lábios macios, e coisas muito ruins, como as costeletas peludas e os dentes perturbados por uma vida inteira chupando os dedos. Talvez ela também estivesse em conflito com seu rosto.

“Devo ser muito palpável”, disse ela para o espelho. “Que livro é esse?”

“Esse eu já terminei”, disse Lea, tirando-o da mesa de cabeceira. “É ‘Crimes hediondos: uma análise dos mais aterrorizantes assassinos da história’”.

Ela havia destacado e escrito em todas as páginas, mesmo sendo da biblioteca.

“O que significa ‘hediondo’?” Shirlei perguntou.

“Mal,” Lea disse de modo soturno.

Ela se sentou de costas e Shirlei deitou-se ao lado dela. Lea leu sobre o maníaco do parque, um vagabundo que estuprou e matou, ao menos, sete mulheres, e tentou assassinar outras nove, em 1998, mas ele confessou 11 assassinatos, sendo condenado por crimes de estupro, estelionato, atentado violento ao pudor e homicídio. Seus crimes ocorreram no Parque do Estado, situado na zona sudeste de São Paulo. Shirlei, de vez em quando, se intrometia com um “Droga, isso é uma merda”. Enquanto chupava os dedos, ela brincava com o lóbulo da orelha de Lea, e Lea finalmente teve que deixar o livro de lado por falta de concentração. Ela se perguntou se Shirlei era sapatona, se ambas eram lésbicas.

“Os homens sempre matam as mulheres”, disse Shirlei. “Devíamos sair por aí matando todos eles, para variar.”

“Sim, garota, você está certa. Os maridos de Joana costumavam bater nela e tudo mais.”

“É assim que vamos fazer. Vamos ficar no salão de sinuca e tudo mais, e quando vermos um deles olhando para nós, vamos até eles e diremos: ‘Tenho uma coisa para você brincar’. Isso vai motivá-los. Vamos bater de pau até eles saírem correndo.

Lea deu uma risadinha e praticou: “Tenho uma coisa uma coisa para você brincar”.

Ela fantasiou a cena enquanto se dirigiam até a casa de Shirlei.

No fundo, ela tremia de medo. Mas não gaguejou nenhuma dessas palavras. Em sua fantasia de vingança, um homem indefinido deslizaria em direção a elas, tentando enganá-las para que entrassem em seu carro. Ele estaria tão determinado a agarrá-las que ignoraria ou não perceberia o picador de gelo que ela ergueria acima de sua cabeça. Atingiria a pele e os músculos de suas costas com um estalo desagradável. Ela descreveu o processo com abundância de detalhes. Shirlei não pareceu se impressionar com a fantasia.

Chegando à casa de Shirlei, ela aproveitou para levar a amiga até o quarto. Queria se maquiar.

Começou a se arrumar diante do espelho do banheiro, trabalhando pacientemente em seus cabelos curtos, misturando um bocado de gel com vaselina para que o gel não formasse crostas. Passou bastante batom de cereja nos lábios, delineador para fazer seus olhos parecerem pequenos, maldosos e sexys, e criou uma marca no formato de pintinha ao lado de sua boca. Lea não conseguia entender como Shirlei conseguia estar tão calma e tranquila ali: o quarto cheirava fortemente a mijo, e a luz aquosa da lâmpada fazia os olhos dela doerem. Passos pesados se aproximaram e a porta do banheiro se abriu, fazendo com que as meninas se virassem. A mãe de Shirlei entrou com um suspiro baixo, olhando-as de cima a baixo.

“Você se acha foda? Você tá parecendo uma putinha.

Quando a mulher saiu, Shirlei jogou a cabeça para trás para que as lágrimas não atrapalhassem o delineador fresco. “Vamos, garota. Vamos mergulhar.

Lea agarrou a mão dela e apertou-a brevemente. Eles atravessaram o corredor e saíram pela porta da frente.

O sol foi um choque depois da casa escura.

“Vamos comprar um bagulho”, disse ela.

Lea parou no meio do caminho, o coração batendo forte. “Eu nunca fumei maconha antes.”

“Confie em mim. É tudo de bom. Vamos voar alto, menina.

Mas Lea ficou cada vez mais insegura à medida que avançavam. Estava ficando quente e Shirlei caminhava rápido demais e para longe demais; não admira que ela fosse tão magra. Finalmente, chegaram a uma casa de tijolos com grama verde e um canteiro com flores em frente a uma janela saliente. Quando Shirlei bateu, um homem grande e peludo abriu a porta.

“Ei, ei”, disse Lea, “eu não vou entrar aí.”

— Um segundo, Luiz — disse Shirlei, soando como se estivesse tentando se manter controlada. Ela puxou Lea para a lateral da casa. “Eu conheço esse cara. Ele sempre me tratou bem.”

“Eu não vou fazer isso.”

“Você não precisa fazer isso. Eu vou fazer isso”, Shirlei riu. “Você fica na frente.”

“Garota, é um homem adulto ali.”

“O cara só tem dezessete anos. Agora, você quer um pouco de maconha ou não?

“Não se você tiver que fazer isso”, disse Lea.

“Eu não preciso fazer isso. Eu quero conseguir minha maconha assim. Essa é a diferença.”

Shirlei desapareceu dentro de casa; Lea sentou-se no sofá com as pernas juntas. “This Is How We Do It” tocava no aparelho de som. Depois de tocar pela quarta vez, Lea concluiu que Shirlei estava demorando. Ela começou a suspeitar que, em algum lugar daquela casa, o menino peludo não estava dando folga ao jovem corpo de Shirlei. Quando Shirlei voltasse, Lea iria lembrá-la do maníaco do parque e do perigo desse estilo de vida. Ela não tinha ouvido gritos, batidas ou algo do tipo, então imaginou que o que quer que estivesse acontecendo era consentido.

Decidiu ir embora, mas assim que se trancou do lado de fora, ela se arrependeu. O calor era sufocante. Sua língua parecia mole em sua boca. Cada passo parecia o último; lutou para aguentar o calor. Finalmente, sua casa apareceu em seu horizonte como uma miragem. Milagrosamente, ela estava sob o toldo e sua chave girava na fechadura. Ela tropeçou no sofá. Demorou algum tempo até que a voz de Carla cortasse seus pensamentos.

“Espero em Deus que você não esteja grávida.”

“Talvez eu seja sapatão”, Lea murmurou.

“Estou matando o trabalho para cuidar do meu bebê”, disse Joana, vindo da cozinha. “Qualquer coisa que você queira conversar, flor.”

Lea balançou a cabeça.

“Porque você sabe que pode falar comigo sobre qualquer coisa. . . .”

“Desde quando?”

“Tem certeza que você e Carla estão se dando bem?”

Lea assentiu.

“Você não vai dizer nada?”

Ela balançou a cabeça.

“Roger fez panquecas. Arrume sua cama enquanto coloco algumas no prato para você.

Lea aproveitou a oportunidade. Percebeu que as panquecas estavam muito boas. Ao arrumar os lençóis, ela imaginou Roger largando o emprego e abrindo um restaurante chamado Deliciosos, onde ele cantaria o cardápio. As pessoas viriam de todos os lugares, e a rede Globo ouviria falar disso e lhe proporcionaria seu próprio programa de culinária, “Delícias da cozinha, com Roger”, e ele cantaria e beijaria as pontas dos dedos porque a comida era muito boa. No final de cada episódio, ele colocaria a mão sobre o rádio imaginário e diria: “É melhor você acompanhar o Roger e continuar cozinhando”.

Quando Lea entrou na cozinha, Joana estava tirando as panquecas da frigideira. A gordura dos seus braços tremiam e covinhas estavam aparecendo no tecido do short.

“Você parece diferente, mãe”, Lea deixou escapar.

Joana colocou o prato à sua frente: um ovo estrelado, uma panqueca e uma salsicha, perfeitamente circular e uniformemente dourada, não carbonizada como ela os havia feito antes de Roger. As mãos de Joana foram parar nos quadris.

“Diferente como?”

“Não importa”, disse Lea.

Joana esvaziou a cafeteira na caneca e despejou açúcar. “Uma garota veio buscar você esta manhã.”

Aquela idiota! Shirlei sabia que não deveria passar por aqui quando o carro de Joana estivesse na garagem.

“Espero que você não receba gente em minha casa, Leandra. Você nem Carla.

Lea estava feliz por Joana não ter dito nada de ruim sobre Shirlei. Ela teria dito algumas palavras bem escolhidas se Joana falasse mal dela.

***

“Adivinha?” Shirlei disse.

“O quê?”

“Você deveria me deixar passar a noite com você.”

“Hein?” Lea respondeu.

“Você me ouviu”, disse Shirlei, girando o pescoço.

Lea a ouviu. O “hein” foi por não entender por que ela diria tal coisa.

“Shirlei, você sabe que não pode passar a noite na minha casa.”

“Sim, eu poderia. Eu poderia simplesmente entrar correndo pela porta dos fundos, entrar no seu quarto e sair correndo antes que alguém se levantasse.

Lea sorriu diante da simplicidade do plano, e então uma terrível frieza tomou conta de seu coração ao pensar que Joana as pegaria. Ela deve ter franzido a testa.

“Não tenho medo da sua mãe”, disse Shirlei.

“Você não precisa, não mora com ela. E, além disso, vejo você quase todos os dias.”

“Mas não nos finais de semana, e à noite é diferente. As pessoas são mais doces à noite. Você provavelmente cheira como um bebê, provavelmente faz pequenos barulhos. E são coisas que você só pode fazer à noite.”

“Como o quê?”

“Não sei, coisa secreta e doce”, disse Shirlei.

Lea estava derretendo com a ideia. Teria que ser numa noite escura e sem estrelas. Ela deixaria a porta dos fundos destrancada na esperança de que um serial killer não descobrisse antes que Shirlei entrasse. Assim que Shirlei estivesse no quarto, cada ponto de sua roupa sairia como num passe de mágica. Seus mamilos seriam elásticos, os ombros puxados para trás como os de uma ginasta. Uma pequena luz brilharia no local onde o diretor uma vez a segurou, a luz do mundo. Piscaria enquanto Shirlei caminhasse em direção à cama de Lea. Ela cheiraria a fruta suculenta, água fria roubada e, vagamente, a picles.

***

Entrar na Loja Sofisticada para Senhoras deu a Lea uma sensação frenética e acolhedora. Havia um zilhão de coisas à venda, demais para qualquer lojista inventariar: gravadores de plástico para aulas de música, luvas de debutante, guardanapos de renda, pó com cheiro de pés de fada, cartões de Dia dos Namorados. Meias diurnas, cabelos falsos pendurados nos trilhos – Seu Geró cobrava pela largura, então algumas mulheres vinham apenas para comprar franjas – e qualquer outra coisa que pudesse tornar agradável o interior e o exterior de uma mulher. Suas precauções anti-roubo eram dois grandes espelhos inclinados no teto e sua velha mãe em um banquinho nos fundos.

A mão direita de Lea tocou as máscaras, de cor azul e roxa, mas ela as guardou. Gloss de cereja, fragrância de bola de Blue Nile e um chaveiro com cabeça de unicórnio foram colocados em seu sutiã. Shirlei gostava de dar uma olhada, mas Lea percorreu todos os corredores apenas uma vez, preferindo entrar e sair. Ao sair, ela pegou um saco de fandangos e um par de brincos de argola enferrujados para pagar e parecer séria. Certamente o seu Geró podia ouvir o coração dela batendo forte enquanto ele registrava suas compras, mas ele sorriu para ela, deu-lhe o troco e colocou suas coisas em uma sacola. Lea se sentiu péssima quando sorriu.

Ainda nervosa, ela se afastou um pouco da loja e acendeu um cigarro enquanto esperava por Shirlei.

“Vai sossegar esse rabo em casa, Leandra”, gritou uma mulher.

Lea saiu correndo.

“Cuide da sua vida”, ouviu Shirlei gritar atrás dela.

Shirlei levou um minuto para alcançá-la.

“Assustador”, disse ela, derrapando e parando.

Lea queria tirar aquele gosto da boca. Shirlei tinha sempre Lea pendurada em seu pescoço ao vagabundear pelo bairro; Lea estava fadada a ser pega.

“Eu tenho que ir,” ela murmurou.

“Tchau, Maria Terrorista.”

Shirlei saiu pisando firme. Lea ficou aliviada por voltar para casa sozinha; às vezes Shirlei se excedia. Ela trancou a porta do quarto e se acalmou examinando seus novos pertences, um por um. Carla bateu, fazendo Lea pular.

“Sua mãe está aqui.”

Lea enfiou as coisas na fronha e foi até a porta da frente, ofegante. Carla estava chegando com sacolas de compras. Lea foi ver se havia mais e levou algumas para a mesa da cozinha. Para sua decepção, Joana começou a tirar panelas e frigideiras dos armários.

“Roger não vai cozinhar esta noite?”

“Não”, disse Joana.

As entranhas de Lea fizeram com que ela franzisse a testa; ela esperava que sua mãe não estivesse tentando algo com alto grau de dificuldade. Joana estava olhando para a geladeira, mas saiu com os olhos inquietos e sem comida. Ela esfregou os nós dos dedos nas órbitas dos olhos.

“Como eu posso ajudar?”

“Tomando juízo. O simples fato de aquela garota estar fora de casa todas as noites, deveria lhe dizer algo. Ela está indo em direção a um caminho sem volta. Espero que você não entre nesssa também.

Lea queria dizer a Joana que ela ainda era ela mesma, mas sabia que não adiantaria nada. Joana estava preocupada com a maldita má influência; sua preocupação era tanta que ela rasgou a pele de Lea com um fio trançado. A surra foi bem intensa, do tipo que não acontecia desde antes de Rogério. Ela sabia que Joana iria chorar logo depois, mesmo que não tivesse nenhum motivo ou direito para isso.

***

“Sua mãe me disse para vir buscar a TV”, ela ouviu Rogério chegar dizendo na porta do seu quarto.

A chave de fenda elétrica gemeu, parou e gemeu novamente. Depois de um tempo, parou de vez e ela ouviu o barulho do aparelho de TV sendo removido e algo mais. Ela sabia que Rogério estava olhando para ela, mas não se deu ao trabalho de tirar a cabeça de debaixo do cobertor.

“Você quer algo para comer, garota?”

Lea não disse nada.

“Sua mãe só quer o melhor para você.”

Roger era novo ali e não sabia de nada, então não faria sentido tentar corrigi-lo. Quando ela espiou por baixo do cobertor, viu que ele havia retirado a porta. Ele voltou e colocou uma bandeja na mesa de cabeceira. Ela não tocou na comida, mas leu o bilhete de Joana.

NOVO CALENDÁRIO DE VERÃO DE LEA:

Seg-Sex — Serviços do Bar do Acarajé com Tia Nelma

Terça-feira — Aula Bíblica Adultos em Chamas por Cristo

Quarta-feira — Aula Bíblica Jovens em Chamas por Cristo

Quinta-feira – reunião do Conselho da igreja

Sexta-feira – Conselho do Cenáculo com Madre Berenice

Sábado – Ensaio do Coro Juvenil

Domingo – Conselho do Cenáculo com Rev.

Lea ficou envergonhada ao ver como Joana organizou tudo. Passar todo aquele tempo na igreja já era ruim o suficiente, mas ir ao Bar do Acarajé com tia Nelma seria o pior. Por um lado, era com a tia Nelma e, por outro, era um lugar frequentado por aquele pessoal evangélico que queria comer as iguarias africanas, mas discriminava o candomblé. Três semanas disso a matariam ou a transformariam em um deles. Ela não sabia como conseguiria sobreviver.

“Ótimo”, disse Lea, devolvendo o sorriso malicioso que sua mãe lhe deu.

Mas, na verdade, o período acabou não sendo tão ruim. Foi como assistir a um programa de TV da vida real com personagens muito peculiares. Ela aprendeu todo tipo de coisa, como quando tia Nelma disse que era possível colocar a desordem na agenda, desde que a mantivesse ocupada com atividades de qualidade. Ela também aprendeu muitas palavras novas do vocabulário ouvindo sua tia falar com sua voz mansa. Por exemplo, como Marcelo e Nalva eram verbais e eficientes. Felipe não era verbal, mas conseguia sinalizar o que queria. Apenas uma funcionária, Nádia, realmente perturbou Lea. Pouco antes do almoço, Lea a viu sozinha e foi até ela. Tentou focar os lindos olhos de Nádia, mantendo os ombros da mulher firmes, olhando-a diretamente e dizendo com a mente: Se você mantiver os olhos imóveis, isso mudará sua vida.

“O que foi?”, perguntou Nádia.

“Leandra, deixe Nádia em paz”, disse tia Nelma.

Tia Nelma, que tinha muito em comum com sua irmã Joana, foi a maior surpresa, doce e gentil com as pessoas com quem trabalhava e mais doce e gentil com as pessoas especiais. Mas ela ainda era a mesma tia Nelma para Lea. Elas estavam almoçando juntas no escritório da tia Nelma quando esta começou a fazer perguntas.

“Leandra Solto, você não estava realmente fazendo o que Joana disse, estava?”

Lea revirou os olhos.

“Os velhos costumavam dizer que essas coisas vão deixar você fraco como água”, disse a tia, rindo.

Mas não foi engraçado para Lea. Sua mãe era uma traidora e ela falava demais. Lea nunca contou a ninguém sobre a vez em que pegou Joana e um homem que parecia Olívia Palito curvados no chão da cozinha quando Joana estava entre um casamento e outro.

***

“Boa noite, abençoados”, disse ela. “Estava em meu espírito fazer algo um pouco diferente esta noite. Espero que ninguém se importe. Irmão Eduardo, você pode vir aqui e me ajudar? Você também, Cecília.”

Isso deixou apenas Lea e Anderson para lidar diretamente com o público. Quando Ricardo e os outros começaram a cantar, Lea analisou cuidadosamente a letra: “Quero duas asas para cobrir meu rosto. Quero que duas asas voem para longe.” Embora uma criatura com muitas asas certamente fosse uma visão incrível, Lea decidiu que ela só precisava das duas asas necessárias para fugir. Quando a música acabou, Ricardo orou. A atenção de Lea se voltou para uma mesa frágil, que continha sucos e biscoitos para o final da aula. Depois de um triplo amém, Ricardo se espremeu ao lado dela, esparramando parte de sua coxa em seu assento. Agora ela não conseguiria nem ler o romance Arlequina que trouxera para passar o tempo. Joana pagaria por isso. Assim que Joana completasse sessenta anos, Lea iria colocá-la em uma casa de repouso que negligenciasse seus residentes.

Na frente, o irmão Eduardo estava dizendo a todos para abrirem no livro de Apocalipse. Ele se atrapalhou em uma leitura, algo sobre Jesus se casando – não em uma igreja, mas com a Igreja.

Cecília Silva era outra estudante estrela da escola bíblica. “O ponto principal desta escritura é que a Igreja precisa se preparar para a vinda de Jesus como uma noiva faria para seu casamento”, disse ela.

“Você está pegando fogo esta noite, irmã Cecília. Como será a preparação da Igreja?”

“Dã”, pensou Lea, a Igreja tem que tomar banho e comprar um vestido. Lea imaginou Jesus em sua noite de núpcias, removendo delicadamente seu manto. Seu cabelo soprava continuamente e sem vento. Sua vara sagrada tremia de desejo e ela mordeu o lábio, tentando conter a emoção. Lea disfarçou a risada com uma tosse e continuou tossindo até que o irmão Eduardo lhe disse para ir cuidar disso. Ela saiu correndo da cadeira e foi para o corredor, onde percebeu que a porta do escritório do pastor estava entreaberta. Atravessou a escuridão e sentou-se atrás da mesa dele. Tirou os sapatos e puxou o tapete felpudo com os dedos dos pés. A penumbra da sala e o ar condicionado arrepiaram pelos por toda a sua pele. Zombando de Jesus, enlouquecendo com Shirlei, roubando – Lea deveria aproveitar esse ar bom, já que ela provavelmente iria assar como uma salsicha no fogo mais quente do Inferno.

Talvez o Inferno fosse inevitável. Algumas pessoas tinham o Inferno na terra, como as crianças cabeça-chata dos orfanatos para menores. Algumas pessoas tinham a mente infernal, como os estudantes da escola bíblica. E Lea, provavelmente. Pensando nisso tudo, ela estava deixando impressões digitais por toda a mesa de vidro do pastor. No corredor, o brilho vermelho e pálido da placa de saída acenava, então ela se arrastou até lá. A porta se abriu com um enorme silvo; ela fez uma pausa, ouvindo e observando a rua solitária, mas ninguém veio salvá-la. Quando ela voltou para a aula, o irmão Eduardo olhou para ela de forma estranha. Ela colocou a mão sobre a parte inferior da barriga, um gesto que o velho poderia interpretar de várias maneiras, e sentou-se novamente, mais perto das bebidas.

***

“Muito”, disse Lea.

“Como o quê? Melhor ainda, quero que você me escreva um parágrafo sobre isso quando chegar em casa. E eu sei que aquela garota está ligando para minha casa e desligando, trazendo Satanás para minha casa. Está me ouvindo?”

A maioria das pessoas não sabia que o espírito estava alojado entre a pele e o músculo. Uma navalha invisível estava libertando Lea. A sensação era insuportável, mas também uma bênção, porque sua pele estava tão esticada que sufocava seu espírito. Ela se arrastou para fora do carro. Lá dentro, Rogério saiu da cozinha, enxugando as mãos em um pano de prato.

“Você está se sentindo melhor, garota?” ele perguntou, como se ela estivesse gripada.

Lea estava pronta para voltar para o quarto dela como se ela não tivesse ouvido, mas Joana a impediu.

“Você não ouve seu pai falando com você?”

Ocorreu-lhe então que Joana era absolutamente idiota. Lea murmurou alguma resposta para Rogério, mas ele não conseguiu responder, visto que Joana estava beijando seu queixo.

“Senhor, não sei o que vamos fazer com aquela criança”, disse Joana.

Mais tarde, Lea ouviu os canos gemendo enquanto Joana preparava o banho. Ela ligou para Shirlei.

“Sua mãe pisou na bola, não foi? Você quer ir ao shopping amanhã? Quero tomar um chai.

“Não, Shirlei. Eu acabei de . . . Eu acabei de . . .”

Lea sabia que a conversa seguiria por esse caminho. Ela nem sabia por que havia ligado.

“Estou prestes a ir até aí.”

“Não!” Lea disse. “Não faça… Não venha… Para a minha casa.”

“Não sei por que tentei sair com uma criança assim.”

“Vou desligar, Shirlei.”

“Por que você me ligou?”

“Eu nem sei, mas preciso ir.” Mas ela não desligou; ficou ouvindo o silêncio.

A voz de Shirlei estava agitada. “Já sinto sua falta. Por favor amiga. Vou chegar tarde.”

“Muito tarde”, disse Lea.

Muito depois da meia-noite, houve uma leve batida na janela e Lea pulou da cama. Ela não estava dormindo, mas também não estava acordada. Ela colocou os sapatos e saiu pela porta dos fundos. Shirlei estava no último degrau, acendendo um cigarro. Lea teve vontade de empurrá-la escada abaixo.

“Abandone esse hábito de fumar, garota.”

“Erro meu. Bunda mole.” Shirlei riu. “Então, vamos ao shopping amanhã ou o não?”

Aquela magia, Lea sabia, havia desaparecido.

“Me dê um desses”, disse ela.

Shirlei pegou um cigarro de algum lugar e enfiou na boca de Lea. Ela tocou a bochecha de Lea que havia sido machucado pelo fio durante a surra. Isso deixou Lea nervosa e envergonhada e mais alguma outra coisa que ela não conseguia identificar.

“E-e-eu não posso mais ficar com você”, disse ela.

“Em primeiro lugar, você não poderia ficar comigo”, rebateu Shirlei.

Lágrimas escorreram pelos seus olhos. O coração de Lea acelerou, mas ela não sabia as palavras certas, então não tentou nenhuma.

“Então é assim?” Shirlei disse.

Lea encolheu os ombros, não querendo chorar.

“Tem sido real, garota.” Shirlei assentiu. “Tem sido muito real.”

E, assim, ela se foi. Ninguém jamais tocaria em Lea com tanta ternura como aquela garota. O pensamento a tirou do torpor, mas quando ela correu para o jardim da frente, Shirlei já estava na metade da rua.

“Shirlei,” Lea chamou.

Shirlei começou a correr. A camiseta que estava amarrada em sua cintura se soltou atrás dela. Lea fumou o cigarro até o fim, jogou a guimba na grama e sacudiu as cinzas da parte da frente da camisa de dormir. Ela chamou o nome da amiga novamente, mas desta vez, dentro de sua cabeça. ♦



José Fagner Alves Santos


Na mais recente parcela do drama de antologia da HBO, há uma ousada recusa em separar a brutalidade sensacional da vida cotidiana. Esta revisão feminista, assumindo o comando das origens machistas da série, traz nova vida à narrativa. Os investigadores, em sua maioria homens, do criador Nic Pizzolatto lutaram contra crimes horrendos em temporadas anteriores, assombrando-os por anos. Agora, sob o comando da escritora-diretora Issa López, a ação se desenrola na escuridão sinistra de Ennis, Alasca, emprestando à temporada seu arrepiante subtítulo, Night Country (Terra Noturna).

A história se desenrola em torno de um cenário arrepiante de cientistas mortos, seus rostos congelados de horror, descobertos no deserto ártico. Entre eles, a língua decepada de Annie Kowtok, uma nativa que lutou contra a dependência da cidade por postos de emprego em uma mina local, emerge misteriosamente. Entram em cena as detetives Danvers e Navarro, lutando com uma história que ameaça sua credibilidade no novo caso.

Enquanto a versão de Pizzolatto carecia de profundidade nos personagens femininos, esta temporada se deleita com suas complexidades. A chefe Danvers esconde instintos maternos e lutas pessoais sob sua aparência dura. Enquanto isso, a estreante Kali Reis, com sua presença naturalista, traz profundidade a sua personagem, Navarro, que enfrenta ameaças tanto externas quanto internas.

A direção de López ressuscita a franquia, mesclando horrores humanos com realismo mágico semelhante ao seu filme de maior sucesso, "Os tigres não têm medo". Ela navega habilmente pela ambiguidade, deixando perguntas sem resposta, especialmente em relação às visões da irmã de Navarro. O diálogo pode carecer do estilo de Pizzolatto, mas López compensa com imagens que são ao mesmo tempo aterrorizantes e cativantes.

"Terra Norturna" subverte os tropos de gênero dos policiais, explorando temas de vingança e autoridade moral. Ele mergulha na complexidade dos relacionamentos em meio a mistérios sobrenaturais, transformando "True Detective" em um programa com substância. Através de uma narrativa íntima, López dá voz a uma nova narrativa - uma que exige atenção.

José Fagner Alves Santos


Seu exílio da alta sociedade de Manhattan e sua consequente decadência artística são o foco da nova temporada do drama de antologia de Ryan Murphy, intitulado "Feud" e subtítulo "Capote vs. the Swans" (Capote contra as Swans). O romance de estreia de Capote em 1948, "Other Voices, Other Rooms", com seus personagens queer e a famosa foto provocativa do autor, o apresentou como um prodígio que desafiava convenções. No entanto, os dias de desafio juvenil já se foram quando "Capote vs. the Swans" se inicia nos finais dos anos sessenta, com Capote (Tom Hollander) sugerindo a sua confidente mais próxima, Babe Paley (Naomi Watts), que não há felicidade maior do que o conforto material. 

Ao descobrir que o marido de Babe, Bill, está envolvido em mais um caso extraconjugal, ela considera o divórcio, mas Capote a desencoraja, citando sua idade e a posição de Bill como presidente da CBS. "Você tem uma ótima vida", lembra ele. "Você tem uma casa nas Bermudas, uma mansão em Coral Gables, a coisa em Londres." Ele entrega a Babe um comprimido para ser ingerido com um pouco de uísque. A conversa deles, que começou com seu pedido para "contar-me tudo", termina com ela envolvida em seus braços. Não será a última vez que veremos a atração de Capote e minimização da dor feminina.

No livro de 2021 "Capote’s Women: A True Story of Love, Betrayal, and a Swan Song for an Era" (As Mulheres de Capote: Uma História Verdadeira de Amor, Traição e uma Canção do Cisne para uma Era), Laurence Leamer teoriza que foi uma combinação de estilo, beleza, riqueza e sofrimento que atraiu o autor para suas amigas mulheres. O dramaturgo Jon Robin Baitz, que adaptou o trabalho de Leamer para a série junto com o diretor Gus Van Sant, oferece outra possibilidade: o ódio inconsciente de Capote pelos esnobes de meia-calça como Lee Radziwill (Calista Flockhart), Slim Keith (Diane Lane) e C. Z. Guest (Chloë Sevigny) provém do conhecimento de que elas nunca teriam tolerado uma mãe ambiciosa como a sua própria (Jessica Lange), que morreu por suicídio anos antes. A performance de Lange como uma mãe rancorosa instigando seu filho a se juntar a ela no inferno se sentiria mais adequada em outra oferta tragi-camp de Ryan Murphy: "American Horror Story".

Se ao menos fosse divertido. A falha fatal da temporada, no entanto, não é sua pieguice ou sua auto-seriedade, mas sim a falta de trama suficiente para sustentar oito episódios. "Capote vs. the Swans" trata de um livro que se recusa a ser escrito, uma sobriedade que não se mantém, um perdão que não vem. É uma história sobre o desperdício de talento que desperdiça seu próprio potencial. Os cisnes têm algumas subtramas - Slim se autonomeia como a executora da expulsão de Capote, Babe fica ansiosa para fazer as pazes após um diagnóstico de câncer, e Lee é consumida por ciúmes de sua irmã mais velha insuperável, Jackie Kennedy - mas, na maior parte, as mulheres são escassamente diferenciadas umas das outras. Isso não dá às atrizes muita oportunidade de se destacar. A rixa de vários anos que os cisnes mantêm contra seu ex-amigo se transforma em uma guerra de relações públicas a ser vencida por quem parece ser menos patético. O vencedor certamente não é Capote, que dissipa a boa vontade de seu ex-namorado Jack Dunphy (Joe Mantello) com sua descida ao alcoolismo e busca deliberadamente espancamentos de seu amante grosseiro John O’Shea (Russell Tovey) com sua língua afiada.

É um retrato dolorosamente desfavorável do artista como um decadente autodestrutivo - talvez até desnecessariamente franco. (Isso não é culpa de Hollander; ele consegue encontrar a humanidade ferida e queixosa em meio às muitas idiossincrasias de Capote.) É mais difícil saber quanta simpatia devemos estender aos cisnes. O livro de Leamer os contextualizou em um ambiente passado: uma oligarquia Wasp pós-guerra, pré-feminista, em que as ambições das jovens eram direcionadas exclusivamente para um casamento vantajoso. Após o casamento, suas posições dependiam do cultivo de conhecimentos inúteis (que Deus ajude a mulher que enviasse convites para festas na cor errada de creme) e de colocar os desejos de seus maridos acima dos seus, mesmo que isso significasse suportar anos de abuso (como se a Barbara Paley da vida real fosse acusada de fazer). A poesia das amizades entre o Capote real e os cisnes derivava de sua precariedade compartilhada: o autor forçado a ser o "bobo da corte homossexual cantando para o seu jantar", como Babe diz em "Feud", e as mulheres sempre ansiosas pela falsa promessa de estabilidade conjugal. 

Babe chama Capote de seu "segundo marido" e, mais tarde, declara que os homens gays "não te abandonarão depois que você atingir certa idade - se alguma coisa acontecer, eles te elevam mais alto". Mas as percepções de Baitz sobre essas dinâmicas são limitadas - e entregues em termos modernos e distraídos. Em um momento, Capote descreve um cisne como uma "mulher branca privilegiada e rica"; durante um de seus muitos almoços regados a vinho, Babe rotula sua traição como um exemplo de "misoginia".

Baitz lança outras ideias meio desenvolvidas: que a deslealdade de Capote foi uma vingança por parte da homofobia dissimulada dos swans, ou que ele escreveu "La Côte Basque" para se libertar de suas garras. Mas essas hipóteses dispersas falham em persuadir ou se unir, o que apenas contribui para a sensação de repetição sem rumo. Para compensar a falta de incidentes, a narrativa pula freneticamente no tempo. Assim, participamos do Black and White Ball, uma festa luxuosa organizada por Capote no Plaza nove anos antes do desastre de "Côte Basque". 

Na narrativa de Baitz, o planejamento do evento é documentado pelos irmãos Maysles, cineastas famosos por sua abordagem de cinéma-vérité. O episódio em si - o mais forte da temporada - é enquadrado como um documentário monocromático, e Albert Maysles dá a "Answered Prayers" seu título quando a gaiola dourada dos swams lembra uma citação atribuída a Santa Teresa de Ávila: "Mais lágrimas são derramadas sobre orações atendidas do que sobre as não atendidas."

Um Swan nunca pode descansar. Em "Feud", Capote explica o epíteto das mulheres apontando para seus árduos esforços para parecerem sem esforço: "Debaixo da superfície nítida da água, elas têm que remar duas vezes mais rápido e vigorosamente do que um pato comum apenas para se manter à tona." No entanto, apesar dos monólogos das cisnes sobre os desafios da feminilidade, a natureza de seu sofrimento permanece vaga. Nunca vemos verdadeiramente o conteúdo do fatídico artigo da Esquire, cuja malícia é suavizada de maneiras que obscurecem a brutalidade de seu mundo. No artigo real, uma mulher é descrita por outra como uma "vadia branca de lixo"; no programa, Capote apenas observa que os membros de sua coterie são conhecidos por envolverem-se em classismo "sutil".

Baitz ainda tenta nos fazer sentir o impacto do trecho. Logo após o escândalo, Capote é visitado por James Baldwin (Chris Chalk), que argumenta pelo potencial revolucionário de "Answered Prayers" como um indiciamento de uma aristocracia americana decadente. Grande parte do encontro parece ser um pedido de desculpas pelo foco da temporada nas cisnes, que Baldwin descarta como "bugigangas de porcelana". 

Há uma parte de Capote que concorda. Mas sua aliança com o outro romancista é conveniente e pouco convincente. Os dois homens são apresentados como companheiros outsiders, trocando elogios sobre a importância do trabalho um do outro - não importa que o próprio Capote tenha considerado a ficção de Baldwin como "crudamente escrita e entediante". O mesmo poderia ser dito de "Feud", cujo protagonista se reviraria no túmulo se soubesse que seus momentos mais baixos inspiraram tamanha monotonia.

José Fagner Alves Santos


Prezada leitora, prezado leitor,

Gostaria de recomendar a leitura de um artigo significativo disponível no site da revista QuatroCincoUm, que analisa criticamente o retorno do socialismo utópico e suas implicações nas desigualdades sociais.

🌐 Link para o Artigo: A Volta do Socialismo Utópico

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  • 🔍 Análise Crítica: Uma avaliação objetiva das ideias subjacentes ao retorno do socialismo utópico.
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Convidamos você a mergulhar nessa leitura enriquecedora, que promete fornecer uma compreensão mais aprofundada das dinâmicas sociais atuais. A discussão está aberta, e seu ponto de vista é valioso.

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Agradeço por sua atenção e desejo uma leitura esclarecedora.

Atenciosamente.

José Fagner Alves Santos
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