Magistocracia: Um Passeio pelo Bosque Oculto do Judiciário Brasileiro



Em “Seis passeios pelos bosques da ficção”, Umberto Eco nos leva por uma jornada encantadora sobre a narrativa ficcional e os vários aspectos da leitura. Em contrapartida, Conrado Hübner Mendes, em “O discreto charme da magistocracia”, nos conduz por um passeio espirituoso, porém mais urgente, pelo lado oculto do Judiciário brasileiro. Sem excessos e com muita vivacidade, o professor de direito constitucional da USP revela, nas 88 colunas e artigos compilados neste livro, por que é um dos observadores mais perspicazes do sistema de justiça do país, e do Supremo Tribunal Federal (STF) em particular.

O STF brincou no bosque da magistocracia enquanto o autocrata não aparecia. No auge da desmoralização, o autocrata chegou. Não foi apenas uma infeliz coincidência. Um tribunal enfraquecido pode ser desobedecido sem custos, exceto para a democracia.

Além de remeter ao título do livro de Eco, este trecho ilustra bem o pensamento de Hübner, desenvolvido nesses textos publicados na imprensa entre 2010 e 2023. Desde 2019, ele é colunista da Folha de S.Paulo, além de pesquisador do Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo (LAUT). Se o Brasil chegou onde chegou com Jair Bolsonaro na Presidência da República, o STF, apesar de ter sido alvo de sucessivos ataques antidemocráticos e golpistas, tem uma parcela significativa de responsabilidade pela crise política que consumiu o país nos últimos anos e quase vitimou a democracia.

A magistocracia do título, um neologismo que une “magistrado” e “aristocracia”, é uma ideia perspicaz para agrupar os vícios que ajudam a corroer a estrutura do Judiciário e, com ele, o condomínio do Estado democrático de direito. Essa fatia dos operadores do direito - não apenas magistrados, mas também procuradores, desembargadores, promotores e advogados públicos - pode apresentar uma ou mais das características da magistocracia: autoritária, autocrática, autárquica, rentista e dinástica.

A leitura de uma coleção de textos que originalmente não foram escritos para serem lidos consecutivamente pode trazer momentos de repetição. No entanto, neste caso, a sensação de déjà-vu apenas reflete a continuidade prejudicial das disfunções do STF. Em 2020, quando Fux assumiu a presidência do tribunal, Hübner fez uma aposta de que o ministro, que agora tinha o poder absoluto de decidir a agenda de julgamentos, não resolveria cinco casos de alta relevância social que estavam parados na corte há anos. Um deles, a descriminalização do porte de drogas para uso pessoal, estava aguardando julgamento há quase dez anos. No ano seguinte, ele dobrou a aposta e adicionou outros quatro. Dos nove, apenas um foi julgado pelo plenário do STF antes do fim do mandato de Fux, em setembro de 2022.

Em 14 de abril de 2021, em meio a mais uma onda de ataques de Bolsonaro ao STF e com mais de 360 mil mortos pela Covid-19 no país, o colunista observou: “A urgência do STF do presente não é mais decidir casos de acordo com um critério transparente e previsível de prioridade. O STF tem urgência em sobreviver como instituição relevante”. Naquele dia, o plenário confirmou a decisão monocrática de Roberto Barroso e determinou que o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, deveria respeitar o direito da minoria da oposição e instalar a CPI da Covid.

Não é surpreendente que o autor veja com ressalvas a resistência do STF às investidas autoritárias do então presidente da República, começando pelo controverso inquérito das fake news. “Espécie de dispositivo de sobrevivência, o inquérito se tornou uma instituição à parte, uma ferramenta de gestão e contenção do ataque bolsonarista à democracia”. As presidências de Toffoli e Fux são vistas como momentos de falta de coragem institucional. A “cacofonia individualista” de alguns ministros mais atrapalhou do que ajudou o STF nesses anos conturbados. Em abril de 2022, ele escreveu que o Supremo precisava de “colegialidade contra o individualismo obstrucionista e tagarela”.

Em um exemplo pouco surpreendente da prática da magistocracia, o professor da USP foi alvo de uma queixa-crime movida pelo então procurador-geral da República, Augusto Aras. Ele pedia a condenação de Hübner por calúnia, injúria e difamação por ter sido chamado de “poste-geral da República” devido à omissão diante do descalabro da política sanitária do governo Bolsonaro na pandemia. Em outubro, o Tribunal Regional Federal 1 aceitou recurso do colunista e encaminhou a ação para a primeira instância, que deve arquivá-la. Na apresentação do livro, Hübner escreve que “instituições erram e acertam. A magistocracia erra, protege o erro e resiste à autocorreção. Seus erros formam sérias comorbidades da democracia brasileira”. A crítica corajosa e honesta e a defesa da imparcialidade e do decoro, como faz o autor, é uma das profilaxias recomendadas.

José Fagner Alves Santos

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