A Banalidade Sublime: Reflexões sobre a Inversão de Valores na Cultura de Massa


Vivemos num mundo em que a gravidade espiritual dos acontecimentos parece ter sido abolida por decreto silencioso. A "matéria jornalística" sobre a filha da Kelly Key — ou melhor, o arremedo de matéria — é uma prova contundente da profunda degradação da consciência coletiva moderna, e mais ainda, do jornalismo como ofício.

A notícia: uma jovem senhora — que não contribuiu com uma linha sequer para o pensamento humano, nem uma pincelada à arte, tampouco uma partitura ao ouvido da eternidade — perde 15 kg, descobre que tem "autoestima" e se torna, automaticamente, assunto nacional. A isso chamam de "notícia". Mas não é notícia — é confissão pública de imbecilidade, com ares de celebração civilizacional.

O que temos aqui é a canonização midiática de um evento inexistente. A transformação do íntimo fisiológico em espetáculo. A alma da sociedade moderna não deseja mais compreender o mundo; ela deseja sentir-se bem dentro dele. E, para tanto, basta transformar qualquer trivialidade em epopeia emocional. A perda de peso vira símbolo de superação. O espelho substitui a consciência. O “antes e depois” fotográfico substitui a elevação espiritual. O Instagram, meu caro, é a nova catedral.

Mas isso não acontece por acaso. Não é apenas a vulgaridade espontânea de uma geração hedonista. Trata-se de um projeto — um projeto de embrutecimento sistemático, que opera por meio da substituição dos valores permanentes por efemeridades sensacionalistas. Quando os jornais trocam Sócrates por Suzanna Freitas, não é por ignorância, é por estratégia. Eles sabem que um povo que discute beleza corporal ao invés de beleza moral jamais oferecerá resistência à tirania.

Mais grave ainda é a inversão total de hierarquias: a filha de uma subcelebridade ganha palco para narrar suas angústias dietéticas como se fossem o retorno de Ulisses a Ítaca. E o público, órfão de símbolos, aplaude. Porque também ele foi despojado da capacidade de discernir entre grandeza e vulgaridade. Já não sabe o que é sublime, porque só consome o trivial. Só lê o que confirma suas emoções. Só celebra quem se parece consigo. E, por isso, tudo o que é elevado torna-se intolerável, porque exige esforço, renúncia, disciplina — mas não do tipo que leva ao emagrecimento, e sim ao espírito.

O que outrora era matéria de conversa entre amigos ou, no máximo, confissão de diário íntimo, hoje se converte em pauta de jornalismo. Não é a decadência da forma jornalística: é sua prostituição deliberada. Transformaram a imprensa num espelho narcísico, onde cada banalidade comovente se torna "relevante" desde que haja um engajamento suficiente nas redes. E a lógica é simples: quanto mais insignificante o conteúdo, maior sua capacidade de produzir identificação emocional imediata — e, portanto, mais fácil de manipular as massas.

É preciso repetir com todas as letras: a cultura que se ajoelha diante da balança não consegue mais levantar-se para lutar por verdades eternas. Quando um país produz manchetes com base na autoestima de uma influencer, ele anuncia não apenas sua ignorância — mas sua rendição.

Assim morre uma civilização: não com o clangor das espadas, mas com o clique anestesiado de um "story" sobre emagrecimento.

E ninguém se dará conta. Porque estarão todos ocupados demais, postando suas próprias versões do "antes e depois", esperando que alguém, em algum lugar, lhes diga que são fortes, que são lindos, que são importantes — como se a verdade dependesse de curtidas.

Um ditado antigo dizia: "A burrice, quando chega a certo grau, é indetectável". E aqui estamos.

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