Os Tropos Literários e o Contexto Histórico na Epopéia de Gilgamesh


Na Epopéia de Gilgamesh, adentramos rapidamente no mundo do nosso herói imperfeito para encontrar o surgimento do segundo protagonista, criado pelos deuses inicialmente para rivalizar com Gilgamesh. Por que então ele precisa de um rival? 


Com seu egoísmo, suas intimidações aos jovens guerreiros de Uruk e sua violação sistemática das noivas da cidade, Gilgamesh personifica a liderança decadente e os excessos do mundo civilizado.

A literatura mundial muitas vezes retrata a vida urbana como uma realidade suja e imoral, tema explorado em obras como "The Country and the City" de Raymond Williams, que discute a dicotomia entre a cidade vista como corrupta e o campo como símbolo de pureza e inocência. No início da Epopéia de Gilgamesh, essa dualidade é representada por Gilgamesh, o líder urbano, e Enkidu, o filho da natureza órfão, que vive em harmonia com os animais selvagens.

Enkidu, em contraste, é retratado como um homem selvagem e livre de amarras monárquicas e religiosas, vivendo em comunhão com a natureza, puro como a grama e o vento. Ele é uma das primeiras figuras na literatura a personificar a inocência preservada em um estado natural, precedendo até mesmo a história de Adão e Eva.

Desde as pastorais de Teócrito e Virgílio até os escritos filosóficos de Rousseau e a poesia de Wordsworth, a ideia de que a humanidade floresceu em estágios mais simples e puros da civilização tem sido um tema fascinante para leitores e escritores. Podemos imaginar um jovem babilônico, há 3.500 anos, estudando nas escolas de escribas em Nippur, copiando textos sobre Enkidu e imaginando uma vida livre da complexidade da civilização, à beira do rio como Enkidu faz no início do épico. Esta visão continua a ser cativante até os dias de hoje.

No entanto, a ingenuidade e a liberdade de Enkidu chegam a um fim abrupto quando ele se envolve com a prostituta Shamhat. O narrador explica o desenrolar dos eventos, marcando o fim da era despreocupada de Enkidu, assim como a curiosidade de Eva marcou o fim do paraíso natural para os primeiros humanos no Livro do Gênesis.

As gazelas viram Enkidu, começaram a correr,
as feras do campo fugiram de sua presença.
Enkidu contaminou seu corpo tão puro que
suas pernas ficaram imóveis, embora seu rebanho estivesse em movimento.
Enkidu estava enfraquecido, não conseguia correr como antes,
mas agora tinha razão e amplo entendimento.
Ele voltou e sentou-se aos pés da prostituta.
Este momento na literatura antiga evoca uma sensação de familiaridade marcante. Nele, vemos o padrão recorrente em que as mulheres desempenham o papel de corromper os homens, levando-os a buscar conhecimentos proibidos. Essa busca por conhecimento e experiência muitas vezes é retratada como uma força corrosiva que mina a inocência juvenil. Enkidu, inicialmente puro, sucumbe aos prazeres carnais e, em seguida, após se envolver com o rei de Uruk em uma vida de pão, cerveja e amizade, é acometido por uma doença. A história da queda da inocência é uma narrativa comum na literatura, mas um aspecto particular dela é a representação da corrosão da pureza campestre pela complexidade e vícios da vida urbana.

Essa dualidade é ecoada em relatos como a Torre de Babel e as histórias de Sodoma e Gomorra no Livro do Gênesis, sugerindo que grandes concentrações de pessoas podem levar umas às outras ao desvio, enquanto a verdadeira essência humana é melhor preservada no seio da natureza.


Agora, passando para a temática da amizade masculina e suas nuances no épico, a relação entre Gilgamesh e Enkidu como guerreiros que compartilham jornadas, batalhas e dependem um do outro para sobreviver é um tema recorrente na literatura antiga. Essa dinâmica é explorada de maneira mais ampla na "Ilíada" e na "Odisseia" em episódios subsequentes. Uma análise mais aprofundada poderia examinar as dimensões românticas dessa amizade, questionando se as demonstrações de afeto, como beijos, abraços e a recusa de Gilgamesh à deusa Ishtar, sugerem um relacionamento homossexual entre os heróis. No entanto, é importante reconhecer que as normas contemporâneas de orientação sexual podem não se aplicar diretamente às civilizações antigas como a Mesopotâmia, Grécia e Roma.


Ao invés de nos perdermos em debates anacrônicos sobre sexualidade, podemos extrair outras reflexões do relacionamento entre Gilgamesh e Enkidu. É interessante situar essa história em seu contexto histórico. Por volta de 1400 a.C., o faraó Tutmés III conduziu uma campanha militar em Mittani, um reino na região norte da Mesopotâmia. A conquista desse reino inspirou outros como Babilônia, Hatti, Assíria e Minoa a oferecerem presentes luxuosos ao Egito imperial em seu auge. 

Embora a guerra ainda fosse uma possibilidade, os líderes dessas nações começaram a perceber os benefícios mútuos da diplomacia, especialmente após o reinado de Amenhotep II. Isso marcou uma transição para a utilização ampla da diplomacia internacional durante a Idade do Bronze Final, um período que viu o intercâmbio de presentes e correspondências eloquentes entre os líderes, tal como representado nas tábuas de argila que são testemunhas das histórias robustas e significativas de nossos personagens.

Analisemos uma dessas cartas exemplares, como a escrita pelo Faraó Amenhotep III ao rei de Mittani durante essa época. A carta do rei de Mittani inicia-se da seguinte forma:

“Diga para. . . [Amenhotep III], Grande Rei, rei do Egito, meu irmão, a quem eu amo e que me ama: Assim Tushratta, Grande Rei, o rei de Mittani, seu irmão, seu sogro, e aquele que te ama.”
A linguagem utilizada na carta segue o padrão diplomático comum do Oriente Próximo durante o final da Idade do Bronze. Outro tratado notável, desta vez entre o rei Ramsés II e o rei dos hititas, apresenta cada monarca declarando:

“Ele é meu irmão e eu sou seu irmão. Ele está em paz comigo e eu estou em paz com ele para sempre. E criaremos a nossa irmandade e a nossa paz, e elas serão melhores do que a antiga irmandade e a paz do Egito com Hatti.”
Este trecho remonta ao Tratado de Kadesh, redigido por volta da década de 1250 a.C., sendo uma cópia dele preservada na sede da ONU em Nova Iorque. É um dos primeiros tratados de paz de grande importância que chegaram até nós, e aqueles que o inscreveram literalmente em pedra devem ter reconhecido sua magnitude e valor, uma percepção que perdura até os dias atuais.

Durante esse período, os escribas egípcios adquiriram o conhecimento do cuneiforme para estabelecer comunicação com as autoridades do Oriente. Os registros sobreviventes desse período refletem uma linguagem diplomática calorosa, amável e profundamente otimista, mesmo que em grande parte direcionada para o teatro político. Ao observarmos o confronto inicial entre Gilgamesh e Enkidu, seguido pela sua reconciliação e formação de uma forte camaradagem, talvez estejamos testemunhando uma narrativa microcósmica sobre civilizações antigas aprendendo gradualmente os benefícios das parcerias amigáveis em detrimento das guerras. A cena comum nos épicos antigos, onde reis e guerreiros se encontram, se tornam amigos e trocam elogios e presentes, transmite um sentimento de alívio mútuo, como se os guerreiros de ambos os lados pensassem: "Ah, então não precisamos mais nos matar. Vamos apenas desfrutar de algumas cervejas juntos".

Outro aspecto essencial da história de Gilgamesh que merece destaque é o próprio protagonista. O título babilônico do épico, "Aquele que viu as profundezas", reflete a complexidade do herói. No início da narrativa, Gilgamesh é retratado como um tirano egocêntrico, governando com brutalidade. No entanto, à medida que sua jornada se desenrola, seu poder e habilidades são exaltados. Ele enfrenta desafios formidáveis, como Enkidu em combate, a derrota do monstro Humbaba e a resistência à deusa Ishtar. No entanto, a morte de Enkidu causa uma transformação profunda em Gilgamesh. Ele passa a questionar o propósito de suas conquistas e a busca pela imortalidade torna-se sua obsessão.

Essa busca pela imortalidade é o âmago da profundidade que Gilgamesh vislumbra. Como um rei com feitos lendários, ele se encontra em uma posição privilegiada para compreender a futilidade da existência terrena. Sua reflexão sobre o que alcançou e o vazio que persiste apesar de suas realizações é uma meditação sobre a condição humana. Ao final do épico, Gilgamesh não é mais um vilão ou um herói, mas uma figura comum que reflete a jornada universal em busca de significado e aceitação da finitude. As muralhas de Uruk, mencionadas como símbolo de sua cidade, representam não apenas uma defesa física, mas também um refúgio emocional e uma conexão com algo maior que a individualidade. Gilgamesh volta para casa, não como um imortal, mas como alguém que encontrou paz ao aceitar sua humanidade e as limitações que a acompanham.


Vamos em direção ao Egito Antigo. A jornada nos levará pelo oeste, atravessando o norte da Arábia Saudita, Jordânia e Israel, passando pela península do Sinai e adentrando o Delta do Nilo até chegarmos à moderna cidade de Luxor, outrora conhecida como Tebas. Nesse lugar, encontraremos um tesouro singular: O Livro dos Mortos, um compêndio de mil páginas que desempenhou um papel central no pensamento egípcio antigo.

A influência mesopotâmica, especialmente a história do dilúvio e a narrativa da criação do mundo, possivelmente deixou sua marca no Livro do Gênesis. No entanto, foi a religiosidade do Egito durante a Idade do Bronze, aliada às práticas cultuais gregas, ao zoroastrismo persa e a outras teologias antigas do período helenístico, que estabeleceu os fundamentos para as religiões posteriores, como o cristianismo e o islamismo. Por volta do ano 1000 a.C., desenvolveu-se no Egito antigo a crença de que, após a morte, cada indivíduo passava por um julgamento divino, no qual seu coração era pesado pelos deuses. Se suas ações estivessem em conformidade com a ma'at, a ordem universal egípcia, a pessoa era conduzida ao Seket-hetepet, o “Campo dos Juncos”, um lugar pacífico sob a regência do deus Osíris. Por outro lado, aqueles que não se alinhavam com essa ordem enfrentavam o destino nas mãos do monstro Am-met.

Essa crença no julgamento divino após a morte tornou-se amplamente difundida e é ainda presente nos dias de hoje. Nos registros sumérios da Epopeia de Gilgamesh, somos apresentados ao submundo sumério, um lugar sombrio de privações e punições. Nas narrativas homéricas e na maior parte da Bíblia Hebraica, exceto por visões de ressurreição nos Livros Proféticos, o submundo é retratado como o destino final de todos, independentemente de suas ações em vida. Esse conceito era prevalente na Grécia Antiga, no antigo Israel e na Mesopotâmia até o período em torno do século V a.C., no qual a maioria das culturas do Mediterrâneo e do Oriente Próximo não acreditava na salvação póstuma.

No entanto, o cenário começou a mudar durante a Idade do Ferro, especialmente após as conquistas de Alexandre, o Grande, concluídas em 323 a.C., que conectaram diversas regiões e expandiram os diálogos entre culturas. Surgiram então cultos que enfatizavam relações pessoais com as divindades e a possibilidade de uma vida após a morte abençoada, desde que as ações do indivíduo estivessem em consonância com determinados padrões. Essa ideia de controle sobre a vida após a morte foi um consolo para muitos em um período marcado por guerras e escravidão em massa.

Essas concepções encontraram eco no cristianismo nos primeiros séculos d.C., embora suas raízes remontem à Idade Média do Bronze

José Fagner Alves Santos

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