Muitas luas atrás, quando o Brasil já não era tão jovem, a esquerda teria feito um comentário bem distinto ao show da Madonna em Copacabana.
A sexagenária hiperperformante (criei o neologismo afrancesado com perper especialmente para a ocasião) teria sido vista como um ícone do neoliberalismo que espera que tenhamos e mantenhamos o máximo desempenho, dentro das aparências da juventude. O título do artigo seria algo assim: «Com Madonna, o capitalismo nunca é tardio».
E, se eu imaginava que a esquerda identitária atual veria a sexagenária caucasiana de visita num país tropical dando notas para a performance oral de jovens negros musculosos como uma espécie de bingo deluxe do neocolonialismo racista, creio que uma esquerda um pouco mais antiga veria naquele número do show apenas um modo de Madonna declarar-se «imbrochável»: um momento em que ela afirmaria um triunfalismo grosseiro, servindo-se dos corpos mais sexualizados. A exibição em pleno palco seria vista como mera exibição, sem nenhuma relação com o gozo.
Nem seria preciso ser muito sagaz para notar que essa encenação é uma espécie de vingança tardia contra a viúva Perpétua: na impossibilidade de gozar, resta obter um gozo secundário chocando algum conservador (o qual, há pelo menos vinte anos, já não tem mais esperanças na cultura pop mainstream e nem terá tomado conhecimento), exatamente como a viúva Perpétua teria seus pruridos reaças contra as moças que, para usar uma expressão talvez já um pouco datada da velha esquerda, «vivem a sua sexualidade».
Não recuo a ponto de falar da esquerda que notaria que aquilo não é música, mas apenas um produto da cultura de massas; que aquilo é mais um divertimento que apenas embrutece o trabalhador e tira sua consciência revolucionária.
Consciência revolucionária! Não me ouça o STF. Mas houve um tempo, houve um tempo (a década de 1990), em que a esquerda desconfiava de Francis Fukuyama falando do «fim da história» e da vitória definitiva da democracia liberal — esta era apenas a máscara boazinha da democracia burguesa e do Estado a serviço dos patrões. Agora a esquerda parece defender o fim aburguesado da história, e celebra Madonna por dois motivos muito simples.
O primeiro é que a esquerda é sua cúmplice. A esquerda quer ser uma sexagenária hiperperformante com um harém de jovens musculosos, adorada pelas massas na praia de Copacabana.
A segunda… Veja o leitor que a primeira parte deste texto foi um exercício imaginativo baseado numa determinada visão de mundo que, apesar de obsoleta (obsoleta porque ninguém mais usa; obsolescência não tem nada a ver com verdade ou falsidade), tinha uma certa coerência interna e uma certa previsibilidade. Essa visão de mundo tinha até uma certa nobreza quando se tratava de contrapor o Bom, o Justo, o Belo, o Verdadeiro… ao aniversário de um banco celebrado no cartão postal do Brasil.
Por que, hoje, o esquerdista é quem adota o discurso neoliberal? Por que o esquerdista é quem celebra as vantagens econômicas do influxo de turistas?
Não sei se a transição de gênero da esquerda começou em 2002, quando Lula se tornou o Lulinha Paz e Amor, amigo dos bancos, com a Carta ao Povo Brasileiro. Hoje, porém, tirando discordâncias reais quanto à legalização do aborto, das drogas, e quanto ao grau maior ou menor de liberalismo econômico e de violência policial, a diferença entre a direita e a esquerda é menos do que estética, e diz respeito essencialmente ao grau de rejeição a… Bolsonaro.
A esquerda nem sequer percebeu que, além de tudo, chegou a usar um linguajar religioso ao falar do show da Madonna, que aconteceu para «purificar» a praia de Copacabana da manifestação bolsonarista ocorrida dias antes. Luciano Huck — por suas ambições presidenciais, um duplo direto de Bolsonaro — chegou a dizer que Madonna «curou» o Brasil.
Isso a que estamos assistindo tem uma das estruturas mais banais da teoria mimética. Em Teatro da inveja, livro sobre Shakespeare, Girard comenta uma longa fala de Ulisses em Troilo e Cressida: uma vez que o Degree, a hierarquia, vá por água abaixo, as diferenças tendem a desaparecer.
No caso brasileiro (mundial? Não sei), a esquerda tinha seus princípios e uma visão de mundo que interpretava os fatos. A esquerda tinha um sistema de coerência interna. Você podia discordar desse sistema, ou até achá-lo ridículo, mas podia conhecê-lo e dialogar com ele.
A esquerda que escrevia nos jornais via-se como a grande aliada de um projeto humanista que era contrário a um capitalismo desumanizador. O liberal seu opositor recordava que o capitalismo tinha tirado mais gente da pobreza do que o socialismo realmente existente. Desses princípios, ou dessas ênfases, decorriam até as diferenças estéticas: o esquerdista com sua nobreza ligeiramente desgrenhada e popular, culto e andando de metrô, e o capitalista com seu terno perfeito, rico mas desprovido de cultura e de uma certa finesse.
Ao lado do capitalista havia um intelectual de direita que advertia para o jogo duplo do esquerdista. O medo — o medo real da direita — era que seus valores fossem sorrateiramente corrompidos pelos esquerdistas que dominavam a cultura. Se eles não podiam fazer a revolução proletária pelas armas, então fariam uma revolução gradual e tranquila pela cultura, ocupando o Estado. O direitista era o folclórico sapo aquecido numa panela.
Retrospectivamente, só me resta perguntar se, naquela década de 1990 dominada pelo «fim da história» de Fukuyama e pelo trauma da esquerda com a queda do muro de Berlim, do fim da URSS, e, por tabela, do «fim das utopias», já não era previsível que, trinta anos depois, eles estivessem pedindo iFood enquanto assistem eletrizados, numa versão paga da sua amada rede Globo, a uma sexagenária gringa dar notas para negros enquanto celebram o aniversário de um banco.
Na série de TV que melhor captou o espírito dos tempos, Diane Lockhart diz: A história se repete. Primeiro como tragédia, segundo como farsa, terceiro como pornografia.
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