Espero que você tenha lido minha postagem anterior (v. O Enuma Elish e o Atrahasis na Mesopotâmia), onde eu começo essa conversa. Prometi que hoje daria continuidade e sigo daqui.
Como espécie, temos uma tendência geral. Gostamos de contar histórias sobre por que as coisas são como são. E gostamos que essas histórias tenham começos definitivos, meios e fins. Podemos não ter a menor ideia de como um motor de combustão interna funciona, ou quais vitaminas e nutrientes fazem o quê em nossos corpos, ou como ondas de rádio transmitem informações. Podemos não ter ideia sobre esses processos que nos cercam todos os dias. Mas isso não impede muitos de nós, como indivíduos, de adotar teorias sobre os começos do universo, o início da vida na Terra ou o destino eventual de nossa espécie. É um hábito estranho – ponderar essas coisas inatingivelmente distantes e ainda não saber dez mil assuntos mais próximos e relevantes dentro do círculo de nossas vidas cotidianas.
Gostamos de pensar sobre os começos e fins das coisas – suas amplitudes e alcances finais. Acredito que fazemos isso porque nossas vidas têm começos, meios e fins. Movemo-nos lentamente pelo eixo X do tempo, aumentamos em vigor e capacidade intelectual no eixo Y e depois diminuímos, deixando para trás um arco de tudo o que fomos e fizemos. Não é de admirar que queiramos que tudo – até o universo – siga uma curva semelhante. Queremos que tenha um momento de concepção, um período de crescimento, um auge e, em seguida, um declínio inevitável. Que possa ser uma longa linha reta, ou muitas linhas retas, ou uma série de espirais – todas essas têm se mostrado menos atraentes do que assumir que o universo tem o mesmo arco e tempo de vida finais que um ser humano.
Quando lemos histórias de criação em conjunto, elas revelam uma necessidade humana relativamente global de explicar por que as coisas são como são e atribuir um ponto de partida a tudo isso. Histórias de criação têm elementos comuns – água, escuridão, então um deus ou deuses criando os fundamentos do planeta, depois um deus ou deuses acasalando e criando mais divindades, depois a humanidade sendo divinamente moldada da terra, ou algo semelhante, a humanidade incorrendo na ira divina e se arrependendo.
Descobertas em astronomia desde Copérnico tendem a desfazer certas histórias de criação – por exemplo, agora é difícil argumentar que a Terra é uma parte de terra em cima de uma grande tartaruga, ou que o céu é parte do cadáver de uma deusa derrotada. Não faz nem quatrocentos anos que Galileu cometeu o maior erro, nos informando que não somos, de fato, o centro físico do universo, e que na verdade estamos apenas girando por aí. Mas algumas histórias de criação ainda estão vivas e bem. Histórias como esta.
O Livro do Gênesis?
No princípio, tudo era tumultuado, primórdios de escuridão. Então as águas e terras foram separadas. Em seguida, a abóbada dos céus foi erguida. Grandes leviatãs e monstros se agitavam no oceano, e Deus os derrotou. E após um tempo, Deus descansou. Logo, a humanidade foi criada, moldada tanto do barro quanto de material divino, e após quase nenhum tempo, as pessoas foram compelidas a uma existência definida pelo trabalho físico.
Com o passar do tempo, Deus tornou-se cada vez mais descontente com as ações dos homens. Um único homem supremamente piedoso intercedeu em nome da humanidade e pediu pela clemência de Deus. Deus cedeu. Infelizmente, em seguida, os caminhos errantes da humanidade continuaram, e a fúria de Deus cresceu. Novamente, o homem piedoso interveio, e novamente Deus foi persuadido a ser misericordioso.
No entanto, à medida que a humanidade continuava a irritar a Deus, Ele planejou um dilúvio cataclísmico, e desta vez, nenhum apelo por indulgência foi atendido. Ao homem piedoso foram dadas instruções para construir um grande barco, no qual ele instalou sua família e uma grande variedade de animais. O dilúvio rugiu, obliterando a humanidade, e quando terminou, o barco ficou encalhado em uma grande montanha, cercado por águas de inundação por todos os lados. O homem piedoso então enviou aves para ver se podiam encontrar terra, e quando uma delas o fez, ele soube que suas tribulações haviam terminado.
Depois disso, Deus e o homem piedoso e seus descendentes tiveram uma nova aliança. O homem piedoso fez sacrifícios de animais a Deus, e vendo os sacrifícios, Deus resolveu tratar o homem piedoso e seus descendentes com justiça e clemência.
Soa familiar? O que você ouviu, é claro, foi a história do Gênesis até o Capítulo 9. Mas também é a história do Enuma Elish e Atrahasis mesopotâmicos, ambos mil anos mais antigos que a Bíblia Hebraica. E curiosamente, embora bilhões de pessoas tenham ouvido a versão do Gênesis, apenas uma pequena minoria erudita conhece as narrativas de criação que vieram antes do Gênesis, que provavelmente o influenciaram.
Desde meados do século XIX, os elaborados paralelos entre as narrativas de criação mesopotâmicas e as histórias de criação na Bíblia Hebraica têm sido estudados, tabulados, diagramados e discutidos por importantes assiriologistas e fundamentalistas obstinados. E como o Antigo Testamento é provavelmente a influência mais importante na literatura lusófona e anglófona, e muitas pessoas realmente leram o Livro do Gênesis antes de parar por volta do Capítulo 30, quando a história dos descendentes de Abraão começa a ficar enciclopédica, é bem legal saber o que estava circulando na Idade do Bronze Tardia que pode ter influenciado essa importante obra.
Então, vamos ao que interessa. Vamos primeiro examinar o Enuma Elish e depois o Atrahasis. Em seguida, vamos examinar algumas evidências detalhadas que sugerem que houve muita interação entre Israel e Mesopotâmia quando as grandes histórias de criação dessas regiões estavam sendo produzidas. Vou citar bastante dessas epopeias babilônicas, e o livro que estou usando é a recente tradução do professoor Jacynto Brandão do Enuma Elish: A Epopeia da Criação Babilônica - uma ótima tradução moderna.
Vou dar um resumo de uma frase de cada epopeia de criação babilônica antes de mergulharmos em uma delas. O Enuma Elish, que vamos cobrir primeiro, fala da criação do mundo, uma guerra entre os deuses mais antigos e seus netos, e o papel que o grande deus babilônico Marduk desempenhou nesse conflito. Isso é o Enuma Elish. O Atrahasis, que vamos cobrir em segundo lugar, trata do porquê dos deuses terem criado o homem, o grande dilúvio que os deuses irados fizeram para purificar o mundo, e Atrahasis, o homem que figurava centralmente nesta história, e é provavelmente um analogia anterior de Noé. Então, primeiro, guerra dos deuses. Segundo, história do dilúvio.
Vamos começar com o primeiro - o Enuma Elish, a epopeia da criação da Babilônia, sobre um tempo em que o mundo era jovem e cru, e divindades convocavam demônios em uma grande guerra entre si, e um jovem deus emergia como o mais poderoso de todos.
Há muito, muito tempo, antes que existissem nomes para qualquer coisa, citando: "Em um tempo em que nenhum ser divino ainda havia surgido", havia dois seres divinos, masculino e feminino, Apsu e Tiamat (lembrou de Caverna do Dragão?). Apsu e Tiamat misturaram suas águas, e dentro dessas águas uma sequência de Deuses nasceu. Primeiro vieram os deuses das terras, depois das esferas superior e inferior, então o deus dos céus e, finalmente, o deus das águas doces que irrigam as colheitas, Ea. Ea era respeitado por todos, distinto por sua grande inteligência e força.
Numerosas outras divindades nasceram, e as gerações mais jovens de deuses festejavam, se divertiam e faziam muito barulho. E não estou brincando sobre a bebedeira. A ficção mesopotâmica está repleta de oceanos de cerveja. Os mesopotâmicos preferiam a cerveja de cevada às águas pantanosas de seus campos irrigados, então não é muito surpreendente que suas divindades também bebessem muito álcool.
De qualquer forma, as celebrações dos deuses mais jovens não passaram despercebidas. Tiamat, a mãe de todos os deuses, reclamou com seu marido Apsu. Apsu concordou que os filhos e netos estavam completamente fora de controle. Ele admitiu que nem conseguia dormir com todo o barulho. Apsu e seu oficial decidiram fazer algo não especificado, mas provavelmente atroz, para silenciar todos os jovens barulhentos.
O sábio jovem deus das águas doces, Ea, ouviu falar desse plano. Ea queria salvar seus irmãos e irmãs da aniquilação. Após fazer algumas preparações, Ea entoou uma encantação que fez Apsu e seu oficial adormecerem. E então, Ea os matou a ambos. Em seguida, Ea colocou o oficial sobre o corpo morto de Apsu e assumiu residência sobre eles. E o antigo patriarca Apsu, pelo resto da história, não era mais um ser, mas sim um lugar.
Tudo estava indo muito bem para Ea, a divindade das águas doces que nutrem as colheitas. Ea havia defendido sua geração de deuses contra a opressão. Ea havia usado tanto astúcia quanto força para derrotar uma terrível conspiração. Logo, Ea se casou, e sua esposa deu à luz Marduk, um menino singularmente promissor. Marduk era bonito e digno. Ele tinha quatro olhos e quatro ouvidos, e chamas saíam de sua boca quando ele a abria. Imagine só o quanto você se orgulharia se tivesse gerado um filho que solta fogo pela boca e com características faciais tão incomuns. Eu, pessoalmente, ficaria sem palavras.
Ea e seu filho Marduk estavam realmente contentes. Agora eles tinham um lugar chamado Apsu para viver. Um deles até fez os quatro ventos e as marés. O que poderia dar errado?
Se você se lembra, Apsu, a quem Ea havia matado em legítima defesa, tinha uma esposa. Seu nome era Tiamat, e ela ainda estava viva, e estava muito zangada. Tiamat não estava apenas furiosa com o assassinato de seu marido. Ela continuava irritada com todo o barulho que os jovens deuses estavam fazendo. Agora não era apenas o irritante barulho de todos os deuses mais jovens. Eles até fizeram uma série de ventos e marés para irritá-la ainda mais. Tiamat estava enfurecida. Ela jurou vingança e formou um exército de deuses e demônios.
Os demônios que Tiamat alistou eram um grupo colorido. Havia "uma serpente com chifres, um dragão mushussu, / um herói-lahmu, um diabo-ugallu, um cão louco e um homem escorpião, / Demônios umu-brutais, meio homem meio peixe, meio homem meio touro". Como se isso não fosse formidável o suficiente, Tiamat recrutou um deus general e disse a ele que quando vencessem a guerra, ele governaria ao seu lado como alma gêmea. Ladeada por seu deus general vice-rei e uma horda de demônios e monstros, Tiamat preparou-se para destruir a geração mais jovem de deuses, de uma vez por todas.
A Guerra contra Tiamat e a Ascensão de Marduk
Ea, o sábio jovem deus das águas doces e pai de Marduk, ouviu falar do grande exército de Tiamat, que era aterrorizante. Os outros deuses disseram a Ea que era sua culpa que Tiamat estivesse buscando vingança. Afinal, Ea tinha massacrado o marido dela e transformado seu cadáver em uma enorme massa terrestre. Ea teve poucas respostas para essas acusações. Por ordens de seu próprio pai, ele foi confrontar Tiamat e suas forças. Duas vezes ele foi, e ambas as vezes Ea recuou. O pai de Ea estava envergonhado com a covardia de seu filho, então o velho pediu ajuda a Marduk, seu neto. E Marduk concordou em liderar o ataque.
Todos os deuses mais jovens suspiraram de alívio. Eles tiveram um banquete e "sorveram cerveja saborosa através de canudos / E ficaram satisfeitos com o consumo de álcool". De alguma forma, mesmo que Tiamat e sua enorme serpente de chifres, dragão, minotauro e homem-peixe estivessem planejando sua destruição iminente, os deuses mais jovens embriagados ainda tiveram tempo de construir um palácio real para Marduk. Depois de sua farra de bebedeira e construção, era hora dos deuses mais jovens se unirem e lidarem com Tiamat.
Os deuses mais jovens declararam Marduk o deus supremo. Eles lhe deram um arsenal de armas. Ele tinha um arco poderoso. Marduk tinha uma rede, projetada para enlaçar qualquer inimigo. Ele recebeu uma maça tão vasta e poderosa que poderia causar enchentes. Marduk prendeu suas armas. E então, repleto de armamentos e à frente de uma carruagem conduzida por cavalos venenosos, Marduk estava pronto para a luta.
Em um ataque inicial contra Tiamat, a matriarca maligna usou um feitiço mágico para tentar persuadir Marduk a baixar suas armas. Mas o jovem herói não foi enganado. Em uma breve luta, Marduk usou sua rede, sua maça e depois seu poderoso arco em Tiamat, enfraquecendo e então matando-a. Depois de cortá-la em pedaços, ele matou seu general e neutralizou seus demônios, e então pendurou metade de seu cadáver para servir como os céus. Na verdade, ele a desmontou completamente. Seu fígado tornou-se o cume do céu, sua cabeça as montanhas, seus olhos o Tigre e o Eufrates, e seu veneno tornou-se as névoas.
Para coroar sua vitória, Marduk construiu um grandioso templo chamado Esharra. Mas este templo não foi seu último projeto de construção - Marduk disse aos deuses que construiria sua própria casa pessoal, chamada Babilônia. Os deuses então criaram a humanidade. Como o Atrahasis lida mais extensivamente com a criação do homem, e como a história de nossa criação é muito semelhante no Enuma Elish e no Atrahasis, abordarei a criação da humanidade no próximo post.
Com a humanidade criada, então, Marduk supervisionou o desenvolvimento de Babilônia, incluindo sua ziggurat. As duas últimas tabuletas do Enuma Elish estão fortemente preocupadas em articular e rearticular a primazia de Marduk sobre todos os outros deuses. Marduk era rei, seus comandos deveriam ser obedecidos, e ele possuía todas as propriedades de cinquenta outros deuses menores. O Enuma Elish termina com a esperança de que "a humanidade, o povo de Marduk [possa] Invocar a história, pronunciar seu nome, recordando a Canção de Marduk / Daquele que derrubou a poderosa Tiamat e foi feito rei!"
Mas eu continuarei essa história amanhã. Espero que você volte.
José Fagner Alves Santos
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