A falsa transgressão da boba


Não sei o que é mais deprimente: o livro em si ou o entusiasmo histérico com que a intelligentsia nacional o acolhe. A boba da corte, de Tati Bernardi, é o típico produto de uma mentalidade que confunde exibicionismo emocional com literatura, e que acredita que meia dúzia de neuroses empilhadas com esperteza instagramável possa compor algo que preste.

A autora – ou melhor, a narradora, que é a autora, que finge não ser a autora – representa aquela figura tragicômica do brasileiro que ascende socialmente e, em vez de usar essa ascensão para algo produtivo, transforma sua inadequação em espetáculo. Ela se diz deslocada entre os ricos, zombada pelos mesmos que deseja agradar, e em vez de tratar disso com o recato de quem compreende sua posição, entrega ao leitor um interminável monólogo autopiedoso disfarçado de humor. É o niilismo do shopping center.

Trata-se de uma autoficção que não ficciona nada. É pura confissão desordenada, sem arquitetura narrativa, sem tensão dramática real, sem uma ideia literária minimamente elaborada. A personagem – que é Bernardi com outro nome, porque hoje ninguém mais tem coragem de escrever sobre o outro – pula de cena em cena como quem troca de roupa diante do espelho, sempre perguntando: “Vocês me acham patética ou genial?” A resposta correta seria: nem uma coisa, nem outra. Só entediante.

A estrutura do livro é um mosaico de episódios anedóticos, todos com a mesma finalidade: mostrar que ela não pertence. Pois bem, isso já sabíamos. Só que a personagem não quer apenas narrar sua exclusão: ela quer ser a vítima gloriosa, a mártir das colunas sociais, a boba que ri de si para mostrar que está acima dos outros. Trata-se, claro, de uma inversão calculada: o humor aqui é escudo e espada. Rindo de si, ela tenta dominar a cena. Mas o truque é velho. E já não funciona.

O problema de fundo, como sempre, é moral. A personagem é uma arrivista ressentida. Detesta a elite, mas quer ser aceita por ela. Zomba dos valores da alta classe paulistana, mas os reproduz com uma devoção supersticiosa. É uma criatura que passou da ignorância pobre à ignorância cara. E o livro é o espelho desse espírito: uma tentativa patética de driblar a própria mediocridade com cinismo e palavras de efeito.

O ambiente descrito – a São Paulo dos cafés literários, dos casamentos de colunáveis e dos jantares intelectuais sem ideia nenhuma – é um circo onde todos fingem ser melhores do que são. E a narradora, ao se fazer de palhaça, acredita que se tornou uma filósofa da tristeza pós-moderna. Isso não é coragem. É vaidade disfarçada de melancolia. É posar de Cassandra em meio à Faria Lima.

E como toda literatura mimética de classe média ressentida, o livro é profundamente conservador em sua estrutura simbólica. Finge contestar o sistema, mas o reforça em cada página. O poder que critica é o mesmo que a excita. As figuras masculinas que satiriza são as que deseja conquistar ou imitar. A personagem quer ser aceita pelo olimpo cultural, quer transar com ele, escrever para ele, ser chamada para os jantares. No fundo, quer apenas a senha do camarote.

Se o livro tem algum valor, é como documento patológico. Mostra com clareza o que acontece quando se perde o senso de verdade e se substitui a experiência pela autoparódia. Mostra também o preço que se paga por viver na fronteira entre o desejo de pertencimento e o desprezo por si mesmo. A protagonista é uma alma que trocou o inferno da pobreza pela caricatura do céu burguês – e agora quer nos convencer de que esse é um dilema existencial.

O título é perfeito, embora inconscientemente. A boba, aqui, não diverte nem denuncia. Apenas reforça o teatro da elite, fazendo o papel que dela se espera: o de quem simula crítica para manter tudo como está. Eis a nova corte – e ela não tem rei, mas muitos bufões.


José Fagner Alves Santos

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