Quando, em 1985, James Baldwin disse ao New York Times que escrevera seu primeiro romance, Go Tell It on the Mountain, para lidar com “aquilo que mais o feriu”, ele não fazia apenas uma confissão terapêutica de artista moderno. Estava, de certo modo, ecoando a máxima heideggeriana de que o pensamento nasce do espanto — ou da dor. Só que, no caso de Baldwin, esse sofrimento estava impregnado de uma densidade que os filisteus contemporâneos não têm sequer vocabulário para apreender: era o drama de um homem negro, sensível e inteligente, vivendo entre os escombros de um país fundado sobre promessas metafísicas de liberdade, mas contaminado até o osso pela hipocrisia racial e religiosa.
O romance — recém-traduzido no Brasil por Paulo Henriques Britto e publicado pela Companhia das Letras, editora que, diga-se, atua como zeladora oficial da intelligentsia pós-tudo — é descrito como "semibiográfico". Como se essa etiqueta já não fosse, em si mesma, uma forma de rebaixamento intelectual, que apequena a literatura ao reduzi-la a uma soma de estrutura social e trauma familiar. Baldwin escreveu, sim, a partir de sua vivência. Mas fez mais: transformou a experiência íntima num campo de batalha teológica, estética e civilizacional.
O protagonista John Grimes é, antes de tudo, um símbolo — um símbolo trágico, à maneira de Sófocles, de uma juventude esmagada entre a brutalidade do pai-pastor e a promessa elusiva de liberdade pessoal. O cenário é o Harlem, não por mero realismo geográfico, mas porque o Harlem é, no romance, aquilo que Dante chamaria de selva escura. A casa pobre, superlotada, sem amor — esse não é um mero pano de fundo sociológico, como querem os leitores com diploma e sem imaginação. É o teatro de um embate espiritual.
Baldwin não escreve com tintas naturalistas. Ele emprega a linguagem apocalíptica da tradição bíblica. E o faz porque compreendeu, como poucos, que o drama negro nos Estados Unidos não é um problema de "representatividade" (essa palavra-clichê dos nossos tempos de anemia intelectual), mas de existência. A dor que atravessa seu texto é uma dor ontológica. Não há lugar no mundo para o negro americano — e essa exclusão não é apenas material, mas também cósmica, espiritual.
Na narrativa, a tensão entre pai e filho — Gabriel e John — encena uma disputa silenciosa entre dois modelos de salvação: o religioso e o artístico. Gabriel, o pai, é um tirano do púlpito, homem que transforma a autoridade paterna numa caricatura grotesca da lei mosaica. John, por sua vez, sonha com outra liberdade: quer ser poeta, professor, astro — qualquer coisa que o retire do gueto da alma em que nasceu. Essa ambição, no entanto, não é mundanidade. É um clamor metafísico, uma recusa ao destino imposto. É, para usar a linguagem de Pascal, o grito do homem lançado entre o nada e o infinito.
Quem lê Proclamem nas montanhas como denúncia social, ou pior, como "romance de formação" racial, está simplesmente despreparado para a grande literatura. Baldwin não está interessado em ajustar contas com o pai opressor, nem em exibir as mazelas da segregação. Ele está fazendo o que os verdadeiros escritores fazem: elevando a experiência particular ao nível do universal — e o universal, para ele, está atravessado pelo verbo bíblico e pela retórica incendiária dos sermões das igrejas negras, aquelas em que, entre o choro e o êxtase, o povo ainda acreditava que Deus pudesse ouvi-los.
Frank A. Thomas, teólogo e ensaísta, percebe isso ao descrever Baldwin como um “pregador contemplativo”, alguém que escreveu ensaios como quem prega e pregou como quem ensaia. Há nisso uma sabedoria antiga, perdida nos tempos de Twitter e resenhas de Instagram: a de que a linguagem pode ser uma forma de salvação — ou de condenação. A escrita de Baldwin é embebida dessa tensão: por isso suas frases são cheias de repetições, visões, dilacerações. Não são elegantes: são verdadeiras. E por isso doem.
A nova edição, organizada por Alice Sant’Anna, faz justiça ao texto, apesar de ceder, como já é praxe no mundo editorial brasileiro, à tentação do revisionismo linguístico. Incluem notas explicativas para justificar termos como “pessoas de cor” — como se o leitor contemporâneo fosse um imbecil irrecuperável, incapaz de compreender o contexto histórico de uma obra publicada em 1953. Esse paternalismo editorial é um insulto não apenas à inteligência do leitor, mas à própria literatura, que só é viva quando permanece intempestiva.
Baldwin é, como já disseram, um autor de impasses. Não oferece soluções, não nos entrega manuais de conduta. Seu romance é, como o jazz que ele tanto amava, um improviso tenso entre o sagrado e o profano, entre a rebeldia e o desejo de redenção. Gabriel, o pai, é um canalha — mas também é um homem que busca, no altar, uma forma de escapar da humilhação. Elizabeth, a mãe, é submissa — mas carrega em si uma memória de liberdade e amor que não ousa mais nomear. Baldwin entende isso. Ele compreende que ninguém é completamente vítima ou completamente algoz.
Por isso, John Grimes é tão poderoso como personagem. Ele está entre mundos. Ele quer fugir, mas também quer crer. Quer amar — mas não sabe como. No fim, sua ascensão à montanha não é apenas uma cena bonita. É um símbolo. Um ato de fé, apesar de tudo. Baldwin, como escritor, também sobe essa montanha. E grita. Não contra Deus. Mas contra um mundo que fez da fé uma prisão e da liberdade uma miragem.
José Fagner Alves Santos
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