Nenhuma cronologia é inocente. O momento em que se inicia uma narrativa é sempre um gesto de vontade — ou de desespero. Escolher a redemocratização como ponto de partida é, no fundo, lançar uma âncora em mar revolto, tentando convencer-se de que há chão firme sob os pés. A democracia, neste caso, seria mais do que um regime: seria uma bússola moral, um ponto de convergência entre experiências díspares, uma gramática comum para os conflitos. Mas como toda tentativa de construir sentido em tempos caóticos, essa também começa a ruir com rapidez desconcertante.
Aos poucos, percebo que esse esforço de compor o retrato de uma “geração a partir do processo de democratização” tem menos a ver com registro histórico e mais com busca de salvação. Busco, talvez, um bote salva-vidas — uma ilhota racional — no meio do naufrágio civilizacional dos últimos anos. A Constituição Cidadã parecia, por um breve instante da história, oferecer um horizonte compartilhável. Mas a maré virou. Surgem afetos autoritários, estéticas de brutalidade, discursos de ressentimento disfarçados de lucidez. A democracia, que já era manca, agora parece uma peça de museu empoeirada, observada com desconfiança por multidões que jamais foram convidadas a habitá-la de fato.
No entanto, o que se desmancha não é apenas uma forma política. É uma crença. A crença de que esse projeto institucional, ainda que frágil e contraditório, pudesse ser um meio de emancipação. Temo que a tal ilha democrática nunca tenha existido. Foi miragem. Num país que é menos nação que sobrevivência organizada sob hierarquias herdadas do tronco e do pelourinho, qualquer pacto social é, no máximo, um ajuste entre castas. Um armistício entre quem tem o poder de legislar e quem apenas luta para não desaparecer.
Essa conclusão não me eleva — me acusa. Me sinto culpado por ceder ao niilismo. Paralisado entre estatísticas grotescas e avanços tímidos. A desigualdade persiste como ferida aberta; os cadáveres de jovens negros, de mulheres assassinadas por seus parceiros, de pessoas trans, ainda se acumulam. E, no entanto, já foram piores — dizem. Mas o consolo estatístico é forma de fingir esperança.
Penso na anemia das forças progressistas, na esterilidade de nossos discursos reciclados, nas bravatas estéticas que confundimos com política real. Penso no teatro moral das redes sociais, onde o engajamento vale mais que a verdade, e onde cada um ensaia sua pureza para uma plateia moldada por algoritmos. Mas então me lembro: derrotamos a extrema direita na última eleição. E daí? A floresta continua tombando. O veneno continua sendo despejado. O apocalipse só mudou de roupa.
Há uma náusea cotidiana que se infiltra pelos poros. O mundo não é mais visto — é deslizado. Jovens colados às telas, vivendo dentro de bolhas retroalimentadas por dopamina digital, já nasceram num planeta que lhes parece condenado. Mas tento resistir ao cinismo fácil. Vejo lampejos — na liberdade criativa com que falam de gênero, nas brechas de solidariedade, nas manifestações culturais que ainda brilham mesmo sob o entulho neoliberal.
A praga do empreendedorismo moral, essa fusão grotesca de teologia da prosperidade com darwinismo corporativo, transformou a sobrevivência em espetáculo e o fracasso em culpa pessoal. Pobres “empreendem” com o entusiasmo de devotos — não porque acreditam, mas porque não têm outra escolha. E do alto, bilionários cafonas posam de gênios, aplaudidos por legiões de admiradores que nunca tocarão sequer a borda de sua fortuna.
Oscilo. Caio num estado mental que Fitzgerald descreveu com precisão: manter duas ideias opostas ao mesmo tempo e ainda funcionar. Entre o nojo e o encantamento, entre a lucidez e a desistência. Tento trabalhar, refletir, viver. Mas a pedra segue ali. Viscosa. Cinza. Uma melancolia que não é só minha, mas de todos que se recusam a aceitar o mundo tal como ele é, e ainda não sabem o que fazer com o que sentem.
Essa pedra — e não a utopia — talvez seja o verdadeiro ponto de partida.
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