Na Argentina e no Chile forjadas sob a mesma aura de pretensa neutralidade científica e, ao mesmo tempo, carregadas de um viés ideológico tão denso quanto o nevoeiro da ignorância ilustrada europeia. Essas imagens, muitas vezes assinadas por militares ou missionários travestidos de pesquisadores, não retratavam os indígenas como sujeitos históricos, mas como espécimes – peças de um quebra-cabeça racial a ser catalogado, dissecado e, se possível, extinto ou assimilado à força. O que se via ali não era a “diversidade cultural”, essa expressão adocicada e inócua dos nossos tempos, mas sim a confirmação visual de uma hierarquia civilizacional onde o europeu, é claro, reinava absoluto no topo da pirâmide.
Ora, vamos com calma: a fotografia etnográfica, desde suas origens, nunca foi inocente. É preciso ser muito tolo ou muito canalha para acreditar que uma lente enquadra o mundo de modo puro, objetivo, sem carregar consigo as intenções e os preconceitos de quem a opera. O que a antropologia do século XIX fez – com suas câmeras, seus cadernos de campo e suas escalas “científicas” de desenvolvimento racial e cultural – foi nada mais que oferecer uma roupagem pseudo-racional à velha barbárie da conquista. Trocaram as espadas por câmeras, os açoites por hipóteses, mas o impulso era o mesmo: subjugar, classificar, dominar.
Albert Kahn, com seus Arquivos do Planeta, por mais progressista que se quisesse, nada mais fez do que perpetuar esse impulso voyeurístico da modernidade. Ele não via culturas – via coleções. Não via povos – via temas para álbuns. Seu fracasso financeiro, aliás, é emblemático: o projeto ruiu não por falta de idealismo, mas por excesso de idealização – uma utopia embalada em autocromos coloridos, ignorante das tensões reais que moldavam os povos retratados.
A questão, meus caros, não é técnica, mas moral. É o espírito da época que se revela nessas imagens: um espírito dominador, pretensamente científico, mas de fato profundamente arrogante. A ideia de que o mundo podia ser possuído com os olhos, domesticado com lentes, congelado em chapas de vidro. Um mundo onde o “Outro” – indígena, negro, mestiço – era sempre o objeto do olhar, nunca o sujeito do discurso. A fotografia, nesse contexto, foi menos um espelho e mais um espólio: uma forma de saque visual, de apropriação simbólica.
Não se enganem: mesmo quando belas, essas imagens têm algo de sinistro. São belas como são belas as vitrines de um museu de horrores. Não informam – adormecem. Não ensinam – encantam. E nesse encantamento nos anestesiam, nos afastam da realidade viva, pulsante, conflituosa dos povos que pretenderam fixar. O gesto fotográfico, como o gesto etnográfico que o acompanha, é profundamente ambíguo: documenta, sim, mas em troca de quê? Em troca do silêncio do fotografado, do apagamento da sua palavra, da sua vontade. Em troca de sua conversão em “tipo”, em “figura”, em “exemplo”.
O que temos, ao fim e ao cabo, é uma iconografia da dominação. E pior: uma dominação travestida de ciência, de progresso, de curiosidade iluminista. Uma dominação que usa a estética como véu, a técnica como justificativa e a empatia como desculpa. Que se diga sem rodeios: a fotografia etnográfica do século XIX e início do XX foi a mais sofisticada expressão imagética do colonialismo. E como tal, deve ser lida, relida, desmontada.
A tarefa, hoje, é devolver a essas imagens o conflito que elas apagaram. Ler nas entrelinhas do enquadramento. Interrogar o que não foi dito, o que ficou fora de foco, o que foi recortado. Porque ali, no silêncio do papel fotográfico, jaz um mundo inteiro que não pôde falar – mas que, se soubermos escutar com inteligência e coragem, ainda tem muito a nos dizer.
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