Francisco e a esperança: um ateu diante de um papa humano demais


Não acredito em Deus. Mas aprendi, com os anos, a respeitar quem acredita — sobretudo quando essa fé se converte em ação concreta, em ética cotidiana, em luta por justiça e não em pedra para arremessar contra os outros. É por isso que, mesmo de longe, olho para o fim do pontificado de Francisco com uma reverência que não costumo conceder a líderes religiosos. O papa argentino, morto em 21 de abril, não me convenceu da existência de um criador, mas deixou claro que é possível usar uma instituição secularmente manchada — como é o caso da Igreja Católica — como trincheira para os mais vulneráveis.

Agora, com o início do Conclave, o mundo especula quem será o próximo a vestir o anel do pescador. Enquanto isso, chega às livrarias, em julho, o livro A esperança nunca decepciona, que reúne seis textos e um prólogo do próprio Francisco, organizado por Hernán Reyes Alcaide e traduzido por Laura Vecchioli do Prado. Não é só mais um título devocional; é um testamento político e afetivo, que atravessa a espinha do nosso tempo com algo que anda em falta: sensibilidade.

Francisco escrevia como quem ouve. E é ouvindo que ele constrói suas reflexões sobre a esperança. Não como virtude etérea, mas como rosto. Para ele, a esperança se encarna — literalmente — nos corpos das mulheres grávidas, dos pobres, dos migrantes, dos civis soterrados em zonas de guerra, dos avós que ainda tentam sonhar por seus netos. É um papa que soube olhar para fora do palácio, mesmo com o peso das batinas. E isso, convenhamos, já o torna um ponto fora da curva.

Ao longo do livro, Francisco retorna aos temas que marcaram seu papado: igualdade de gênero, justiça social, crítica ao sistema penal falido e à exploração econômica de corpos e territórios. Tem quem diga que ele politizou demais a religião. Eu diria o oposto: ele foi humano demais para se contentar com a política como ela é. Leio trechos em que denuncia o machismo estrutural, a meritocracia fajuta e o encarceramento em massa e penso: quantos chefes de Estado — laicos — têm essa clareza moral?

Francisco não fazia rodeios ao afirmar que as mulheres ainda são tratadas como cidadãs de segunda classe, especialmente quando são pobres e negras. Não usava linguagem ambígua ou frases de efeito para agradar conservadores. Em um mundo onde tantos se dizem “pró-vida” mas ignoram os corpos que apodrecem nas celas, nas ruas e nas travessias do Mediterrâneo, ele tinha a ousadia de falar sobre direitos humanos como quem os entende de verdade. E isso, vindo do líder de uma das instituições mais antigas e rígidas do planeta, é quase um milagre — mesmo para quem não acredita em milagres.

Outro ponto de destaque no livro é sua abordagem sobre o sistema prisional e o que ele chama de “injustiças sistêmicas”. Em suas palavras: é fácil punir os mais fracos enquanto os peixes grandes nadam livres. E como discordar? Basta um olhar rápido sobre os presídios lotados de jovens pretos e pobres — vítimas de uma guerra às drogas que nunca chegou aos apartamentos de luxo — para perceber que ele está certo.

Mas talvez a faceta mais incômoda e, ao mesmo tempo, mais necessária do pensamento de Francisco seja sua defesa intransigente dos migrantes. Contra o discurso hegemônico do medo, ele resgata a dimensão histórica e cultural das migrações. Recusa-se a vê-los como “invasores”, insistindo que são seres humanos que, como qualquer um de nós, querem ter o direito de ser algo mais. Francisco não romantiza o sofrimento — ele o denuncia. E essa denúncia é feita com uma firmeza que falta a muitos ateus engajados.

Ao contrário de outros líderes religiosos que alimentam guerras culturais para manter seus fiéis entretidos, Francisco parecia mais interessado em empurrar a Igreja para o século XXI — ou, ao menos, para fora de seus muros. Fez inimigos, claro. Mas também fez história. E não pela teologia, mas pela ética. Não pela doutrina, mas pela disposição de se colocar ao lado dos que sempre estiveram do lado de fora.

Não sou católico. Não quero ser. Mas reconheço quando um homem, ainda que envolto em rituais que não compreendo, fala com o coração de quem já perdeu, já viu a fome, já ouviu o choro da guerra. Francisco não foi um papa perfeito — e talvez justamente por isso tenha sido tão necessário.

Seu legado não me converteu à fé. Mas me lembrou que, mesmo num mundo cínico, ainda é possível encontrar figuras públicas que falem de dignidade com a seriedade que ela exige. E isso, para mim, já é motivo suficiente para lamentar sua morte — e, quem sabe, abrir suas páginas com a mesma reverência que reservo aos bons livros e às boas causas.

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