A fotografia da antropologia


Fotografia e etnografia nasceram quase juntas, como gêmeas siamesas da mentalidade cientificista do século XIX, essa era saturada de arrogância iluminista e de pretensões demiúrgicas travestidas de neutralidade acadêmica. Ambas floresceram no seio de uma Europa que, sob o pretexto de “compreender o outro”, o sujeitava, o dissecava e o empalhava em molduras conceituais dignas de laboratórios de taxidermia intelectual. O Museu Colonial de Haarlem (1864), depois transplantado para Amsterdã e rebatizado com o eufemismo tropicalista de Museu dos Trópicos, não passa de um altar secular onde a superioridade do colonizador se transubstanciava em vitrines. O mesmo vale para Budapeste (1872), Berlim (1873), Paris (1882) e sua mutação para Museu do Homem em 1937 — uma tentativa ridícula de humanizar o zoológico ilustrado dos vencidos.

Os museus do século XIX abandonaram a sofisticação aristocrática dos gabinetes de curiosidades renascentistas, que ao menos tinham a decência de se reconhecer como espaços de exceção, para embarcar na ilusão progressista da cultura de massas. A mesma patologia se manifesta nas exposições universais: feiras de vaidades tecnológicas e teatrinhos coloniais onde o europeu médio, esse filisteu entediado, podia passear pelos trópicos sem sair de Paris, graças ao espetáculo grotesco dos “zoológicos humanos” do Jardin d’Acclimatation e do Folies Bergère. Um circo antropológico travestido de ciência, onde a brutalidade colonial se exibia com o verniz da civilização.

A etnografia, filha bastarda da Revolução Industrial e da antropologia positivista, emergiu como instrumento da expansão imperial — com régua, compasso, catecismo e câmera. O missionário evangelizava a alma, o etnógrafo catalogava a pele, o comportamento, o “tipo” — tudo embalado na mistificação da ciência desinteressada. A ciência moderna, sempre cega para si mesma, jamais admitiu que sua vocação universal era, desde o início, um projeto imperial mascarado.

Não por acaso, Jules Verne — gênio literário e arauto inconsciente da técnica — publicou em 1873 A Volta ao Mundo em Oitenta Dias, consagrando a ideia de que o planeta era, afinal, uma vitrine. O tempo mítico cede lugar ao tempo industrial. A aventura não é mais o desconhecido, mas o exótico domesticado. A fotografia entra em cena como o novo oráculo visual da modernidade, instrumento do saber e da dominação: um olho que congela e define. Militares, exploradores, cientistas e mercadores recorrem à câmera como quem finca uma bandeira.

Malinowski e Lévi-Strauss, esses demiurgos da antropologia moderna, até tentaram resistir ao fascínio fotográfico — mas como resistir à sedução do real objetivado? Lévi-Strauss, aliás, sucumbiu à nostalgia e publicou Saudades do Brasil em 1994, revelando que por trás do cientista havia um esteta melancólico, ressentido com a impossibilidade de capturar o outro sem matá-lo conceitualmente.

A fotografia etnográfica nasceu, portanto, ambígua e viciada — um simulacro científico a serviço do preconceito. O retrato é o espelho torto da ideologia racial do século XIX, embutido em cartões-postais e cartes de visite, consumidos com avidez por um público europeu sedento de exotismo e pornografia colonial. Roland Bonaparte, herdeiro da tradição napoleônica da dominação estética, colecionava tais imagens como quem coleciona troféus de caça.

Com os Lumière, a fantasia colonial ganhou movimento. Gabriel Veyre filmou a América Latina como quem coleciona “vistas” — mas o que é uma “vista” senão uma amputação do real? Albert Kahn, banqueiro filantropo, tentou construir a enciclopédia visual das culturas do mundo, mas seu projeto — como toda utopia iluminista — naufragou na própria megalomania.

Não importa o quanto se fotografe ou se filme: a câmera, como a linguagem, não é neutra. Ela é vetor de poder. Os retratos de Maria, a antilhana, mostram isso com clareza: ela não era cliente, mas modelo — e o fotógrafo era soberano. Exotismo, erotismo e racismo fundem-se numa imagem que diz mais sobre o olhar europeu do que sobre a mulher retratada.

Agassiz, o “cientista” suíço-americano, ilustra o ponto com perfeição trágica. Em sua cruzada contra a miscigenação, usou a fotografia como prova de uma degenerescência imaginária. Seu olhar era pseudocientífico, mas sua obsessão era teológica: a pureza racial como dogma. No Brasil, Christiano Júnior e Henschel reproduziram o mesmo fetiche: transformar corpos negros em souvenires coloniais.

Mesmo os mais “respeitáveis” fotógrafos, como Marc Ferrez, colaboraram na construção do mito nacional, ocultando a escravidão por meio de panoramas pastorais e estúdios romantizados. O indígena era símbolo poético; o negro, mercadoria visual.

O escândalo do Putumayo — genocídio disfarçado de progresso — não escapou à lógica imagética. Arana, o barão da borracha, tentou lavar sua honra com fotografias. E Silvino Santos, cinegrafista lusitano a serviço do capital, registrou o teatro cínico da conciliação racial encenado para os diplomatas. A câmera se tornava testemunha fabricada — um tribunal silencioso, manipulado.

A verdade é que a fotografia etnográfica sempre flertou com o artificial. Sua “objetividade” é truque de prestidigitação. Mas os arquivos de propaganda de Arana, paradoxalmente, viraram documentos. O tempo transfigurou a manipulação em memória — e o olhar crítico contemporâneo escancara aquilo que os olhos do século XIX se recusavam a ver.

A fotografia, como a ideologia, nunca foi inocente.

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