Sobre o Escrever e o Delírio Algorítmico


Escrever um bom texto — ainda que de poucas linhas — é tarefa hercúlea. Exige não apenas domínio da linguagem, mas a mais rara das virtudes modernas: a clareza de pensamento. Numa era em que até doutores tropeçam nas próprias ideias como bêbados em calçada molhada, pensar com nitidez e traduzir esse pensamento em palavras coerentes tornou-se um ato de rebelião. A escrita não é mera transcrição da tagarelice mental, mas sim o esforço de estruturação da consciência, o espelho de uma alma ordenada.

Mas não espere que as massas compreendam isso. No Brasil, país da preguiça mental institucionalizada, preferem-se os áudios de WhatsApp — a versão digital do grunhido primitivo. A estatística confirma o diagnóstico: somos campeões mundiais na arte de apertar o botão e despejar sons desconexos. Isso não é apenas um hábito tecnológico, mas a manifestação concreta da recusa em ordenar o pensamento. E onde não há pensamento, tampouco há civilização.

Agora, como se não bastasse essa debacle cognitiva, aparece o novo Messias da burrice automatizada: a inteligência artificial generativa. ChatGPT, Gemini, Claude, Llama — nomes que soam como personagens de desenho animado e que muitos tratam como oráculos pós-modernos. Professores, que mal leem Aristóteles, agora terceirizam suas aulas para robôs. Alunos, que nunca escreveram um parágrafo decente, produzem teses inteiras com a ajuda de máquinas. E o mundo aplaude, achando que se trata de progresso.

Mas aqui está a fraude: não se trata de avanço, e sim de evasão. A máquina não pensa, apenas regurgita padrões. O que ela escreve não vem de uma alma, mas de um algoritmo. E isso é o que separa o texto humano — com todos os seus erros, hesitações e lampejos de genialidade — da perfeição morta da produção automatizada. Não se escreve apenas com o cérebro; escreve-se com a memória, a consciência e a experiência — todas elas, por definição, humanas. Substituir isso por um sistema que aprende sem entender, que escreve sem viver, é reduzir o logos à caricatura mecânica.

Luciano Floridi, filósofo desses tempos amolecidos pela técnica, tenta ao menos levantar a discussão. Em seus artigos sobre “escrita distante”, alerta para o esvaziamento da autoria e a crise do sentido. Introduz o conceito de "capital semântico" — a ideia de que o valor do conteúdo reside não apenas no que é dito, mas de onde vem e como foi criado. É uma tentativa louvável, ainda que tímida, de recolocar a dignidade do autor no centro da mesa. Mas será que o mundo ouve? Duvido.

A confusão é total: há pesquisadores atribuindo autoria à IA, como se o ChatGPT fosse um Descartes digital. Revistas científicas, outrora bastiões da razão, aceitaram artigos com robôs como coautores. Um delírio. A própria ideia de autoria pressupõe responsabilidade moral — algo que só existe onde há consciência. Transferi-la para um programa de computador é como declarar Sócrates culpado por crimes cometidos por seu papagaio.

E há mais. A IA, treinada nos lixos e nos brilhos da produção humana, carrega consigo os mesmos vícios da humanidade, mas sem sua capacidade de crítica. Reproduz preconceitos, distorce verdades, mistura o ouro com o entulho, sem qualquer critério senão o do cálculo estatístico. E pior: tudo isso com a aparência de lucidez. O resultado é uma escrita homogeneizada, asséptica, sem alma — o oposto da literatura, que é, por definição, a luta do espírito com a linguagem.

No plano educacional, o estrago é ainda maior. Professores já não sabem distinguir o que é trabalho do aluno e o que é produção sintética. Avaliações tornam-se farsas, diplomas perdem o sentido e a formação intelectual vira um teatro de sombras. Fala-se em “democratização do acesso à escrita”, mas o que se vê é a industrialização do simulacro. Mais gente "escrevendo", menos gente pensando.

É preciso repetir: a escrita, em seu sentido mais elevado, não é um produto. É uma via de autoconhecimento, de contato com o real, de encarnação da verdade no verbo. Remover o autor do processo é apagar a alma da palavra. E o que resta então? Um palavrório indistinto, uma sopa morna de termos bem organizados, mas espiritualmente mortos.

Floridi acerta ao afirmar que estamos diante de uma mutação não apenas da escrita, mas da leitura, da autoria e da própria compreensão do humano. Mas o problema vai além dos diagnósticos filosóficos. Estamos, na verdade, assistindo ao triunfo de um novo tipo de analfabetismo: o do homem que sabe ler mas desaprendeu a interpretar, que escreve mas não diz nada, que produz conteúdo mas não conhece a verdade.

A ascensão da IA como ferramenta de escrita não é, como dizem os otimistas ingênuos, o início de uma nova era de criatividade. É o sintoma de uma renúncia coletiva: a de pensar, a de aprender, a de ser. O futuro, se continuar nesse ritmo, não será feito de escritores, mas de operadores de prompt. Um mundo onde todos escrevem, mas ninguém é autor. Onde há textos aos milhões, mas nenhuma voz.

Em suma: o problema da IA na escrita não é técnico. É moral, espiritual e civilizacional. E se não for enfrentado com a seriedade que merece, acabaremos trocando o logos por sua sombra, a linguagem por sua caricatura, e a verdade — essa exigente e luminosa senhora — por uma sucessão infinita de frases bonitas, mas sem dono, sem sentido, e sem vida.

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