As emoções do pecado (sem a cortina de incenso)


Acordei esta manhã com a impressão incômoda — e, admito, intelectualmente estimulante — de que nossa experiência moderna do pecado tem mais em comum com a tragédia grega do que com qualquer catecismo. O que nos comove, hoje, no ato de pecar — supondo que ainda sejamos capazes de ser comovidos por alguma coisa — não é o escândalo moral, mas o patético inevitável. Não é o crime, é o destino. Somos, no fundo, personagens de Sófocles com diploma de psicologia clínica e um aplicativo de meditação.

A associação com Aristóteles é tão óbvia que chega a irritar. Mas, como toda obviedade duradoura, ela resiste porque funciona. Hamartía, esse termo que os tradutores eclesiásticos, com sua obsessão por cercas morais, decidiram rebatizar como “pecado”, aparece na Poética como aquilo que desencadeia a queda do herói trágico. Traduzir hamartía por “falha moral” é quase tão grosseiro quanto traduzir psyche por “alma” — uma dessas distorções piedosas que visam proteger o leitor da vertigem do real.

Na origem, hamartía não tem nada de pecado. É simplesmente um erro. Um desvio. Um tiro que não acerta o alvo. Não há culpa teológica, não há tribunal celestial. Há, sim, o inevitável entrelaçamento da ignorância com a ação. O sujeito erra — e paga. Não porque transgrediu uma norma sagrada, mas porque o mundo, mesmo sem deuses, ainda cobra caro por quem age sem saber o que está fazendo.

Que isso tenha sido recoberto, séculos depois, por camadas de culpa, expiação e juridiquês teológico, não é de surpreender. O cristianismo, com sua vocação administrativa, transformou a tragédia em código penal. Onde havia destino, enfiou contrato; onde havia horror, enfiou confessionário. Substituiu a catarsis por casuística. É um feito notável — mas, como toda tentativa de domesticar o caos, tem prazo de validade.

Voltemos a Aristóteles, que pelo menos sabia do que estava falando. Quando ele descreve a hamartía, fala também das emoções que a tragédia deve provocar no espectador: phobos (medo) e éleos (compaixão). Não se trata de uma pedagogia moral. Trata-se de tocar o fundo do humano, esse lugar em que todo juízo se suspende porque o horror se impõe.

Tome-se Édipo. Ele não é um monstro. Ele é um homem comum. Comete atrocidades — sim — mas sem saber. Mata o pai, casa com a mãe, cumpre a maldição. Mas não é o responsável no sentido moralista do termo. É apenas o infeliz executor de uma ordem que o ultrapassa. E é justamente por isso que o público sente medo e compaixão. Porque percebe: “no lugar dele, eu teria feito o mesmo”. A tragédia é eficaz quando revela o que somos — não o que deveríamos ser.

Esse é o ponto. O pecado, quando escavado até seu osso mais duro, tem menos a ver com rebeldia e mais a ver com ignorância ativa. Pecamos não porque odiamos o bem, mas porque não sabemos onde ele está — ou pior, porque confundimos o bem com outra coisa: alívio, conforto, pertencimento. E depois vem a fatura.

O que nos resta então são duas formas de abordagem. A via do medo — preferida pelos moralistas, sempre de olho em algum cargo no tribunal da alma — e a via da compaixão, mais rara, mais arriscada, porque exige pensar. A primeira reduz o pecado à infração contratual: aqui está a Lei, ali está o transgressor, acolá o inferno. Simples, robusto, ineficaz. A segunda o compreende como enrascada humana, como descompasso entre desejo e lucidez.

Na via do medo, Deus é um tabelião onisciente: forneceu o contrato, você assinou, agora aguente as cláusulas. O pecado, nesse modelo, é uma quebra de contrato — e o arrependimento, um pedido tardio de revisão de termos. Tudo muito lógico. Tudo muito estúpido.

Na via da compaixão, não há tribunal. Há teatro. Você se vê em cena, percebe o ridículo do seu gesto, o patético da sua condição, e se reconhece culpado — mas não por ter “escolhido o mal”, e sim por ter sido estúpido, precipitado, cego. Você entende que pecou não porque quis pecar, mas porque não soube fazer melhor. E isso não o absolve — o condena de forma mais profunda.

Nesse sentido, o Kyrie, eleíson — aquele velho gemido litúrgico que sobreviveu à passagem dos séculos — adquire outro valor. Não é uma bajulação ao tirano celeste. É um pedido seco, rude, adulto: “Ajude-me a sair desta miséria.” Não é o servo pedindo perdão ao senhor. É o homem pedindo ao mundo, ou a quem puder ouvi-lo, que o tire do poço onde ele próprio se enfiou.

Alguns, é claro, vão dizer que isso enfraquece a ética, que abre espaço para o relativismo, que desmoraliza o pecado. São os mesmos que acreditam que a virtude nasce da vigilância constante, como se o homem fosse um cão de guarda da própria alma. Nada mais cansativo. Nada mais falso. O bem não nasce do medo — nasce da compreensão. Quem só age corretamente por temor de castigo é, no fundo, um delinquente domesticado.

Não acredito num duelo maniqueísta entre “minha vontade” e “meus impulsos”, essa fábula de autoajuda com roupagem de batalha espiritual. O que existe, em geral, é um emaranhado mal resolvido de desejos, traumas, pavores, padrões repetitivos. Você pode reprimir um deles e descobrir que outro cresceu no subterrâneo. Cortou a gula? Bem-vindo à obsessão por controle. Cortou o sexo? Prepare-se para a raiva mal disfarçada.

Se há redenção possível, ela virá pelo pensamento — nunca pela penitência. E pensar, neste caso, é admitir: a condição humana é trágica. Não porque estamos condenados ao inferno, mas porque somos capazes de errar sem saber que estamos errando — e ainda assim sofrer todas as consequências.

A tragédia, ao contrário da moral, não promete solução. Só lucidez. E isso, às vezes, basta.

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