Elena Ferrante: a enigmática artífice da metamorfose feminina



No cenário literário contemporâneo, emergiu uma figura paradoxal: onipresente e ausente ao mesmo tempo. Elena Ferrante é essa escritora que se faz presente em milhares de mesas de cabeceira, mas cuja identidade permanece tão misteriosa quanto suas narrativas. Trata-se de uma estratégia não de evasão, mas de intensificação: ao retirar sua presença, Ferrante torna mais visível o pulsar interior de suas personagens, criando um desdobramento narrativo que nos encanta com a sensação de que quem conta a história não somos nós, mas a própria vida.

É impossível não perceber uma relação direta entre a condição social de suas protagonistas — saídas de bairros pobres da pós-guerra napolitana — e o modo como elas se transformam, camada a camada, ao longo de cada livro. Não se trata apenas de ascensão social ou literária, mas de um processo de transmutação identitária. Tomemos como exemplo as heroínas de L’amore molesto, I giorni dell’abbandono e, sobretudo, dos quatro volumes da série napolitana: nelas, a filha torna-se esposa, a esposa torna-se mãe, e todas as versões coexistem, se chocam e dialogam dentro de uma mesma cabeça.

Esse efeito de “metamorfose” remete às figuras clássicas da mitologia e da alquimia, mas com raízes profundamente humanas. A prosa de Ferrante, segundo a crítica, faz um espelho das transformações internas das mulheres que atravessam as rupturas da existência moderna — o deslocamento íntimo, doloroso, porém fecundo.

Ao contrário dos narradores circulares dos contos antigos, Ferrante se afasta do artificioso e abraça o real: ela pode nos mostrar uma mãe que, em La figlia oscura, retém silenciosamente a boneca de uma criança alheia, não por maldade, mas pela voraz tentativa de recuperar a infinitude perdida da infância. Trata-se de um gesto simbólico — e perturbadoramente humano — que define seu talento para mostrar como as pequenas atitudes cumprem funções emocionais gigantescas.

O anonimato voluntário da autora reforça ainda mais essa dinâmica: não há biografia nos extravasando pelos poros do texto, nem sociólogos opinando sobre sua origem. Decifrar Ferrante é decifrar o ritmo interno de suas personagens — e essa anomia tutelar faz com que o leitor fique frente a frente consigo mesmo, desarmado de distrações.

No fim do terceiro volume da série napolitana, Storia di chi fugge e di chi resta, ficamos imersos num limbo narrativo inventivo: não sabemos bem o que acontecerá com Elena ou com Lila. A tetralogia termina em Storia della bambina perduta deixando apenas rastros de desejo, ruínas afetivas, ambições abortadas e perpétuas reinvenções. É um universo que respira, pulsa e nos abandona com perguntas insolúveis — como se a narrativa fosse a própria vida.

Em última instância, Ferrante reativa uma tradição mitopoiética — aquela de contar histórias que nos ressoam mais pela epifania vivida do que pelo elegante encerramento da trama. É esse dispositivo de suspensão que dá a seus livros um caráter eterno: as mulheres que lemos não são personagens de livro, são corpos que habitam para sempre as nossas memórias.

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