Elena Ferrante e a impostura do anonimato virtuoso



É claro que, para o leitor domesticado pelas convenções culturais do nosso tempo, a figura de Elena Ferrante aparece como uma espécie de milagre editorial: uma escritora que vende milhões, sem aparecer, sem dar entrevistas presenciais, sem posar nua para a Vanity Fair e — pasmem — sem sequer assinar com seu nome verdadeiro. A intelligentsia bate palmas, os professores universitários suspiram aliviados, e os leitores repetem como papagaios que finalmente apareceu uma autora “livre do ego”, “sem vaidades pessoais”. Balela.

Anônimo é o canal de esgoto. A identidade — a pessoalidade concreta do artista — é o que diferencia o escritor do chatbot. A tentativa de Ferrante de desaparecer é, paradoxalmente, um projeto estético profundamente autocentrado. A máscara do anonimato não é ausência do eu, mas sua duplicação teatral. Trata-se de um fingimento altamente calculado, que, claro, funciona à perfeição nos tempos em que a covardia virou virtude e a renúncia à responsabilidade estética é confundida com misticismo.

Não estou dizendo que a obra é ruim. Ao contrário. A tetralogia napolitana — L’amica geniale, Storia del nuovo cognome, Storia di chi fugge e di chi resta, Storia della bambina perduta — é, em muitos aspectos, um dos documentos literários mais intensos da degeneração da experiência feminina na modernidade. Ferrante descreve o mundo das mulheres com um talento quase oracular: sem sentimentalismo, sem empoderamento de almanaque, sem o lirismo artificial que costuma infectar esse tipo de narrativa. O que ela oferece é carne viva. Sangue coagulado em ressentimento, desejo e sobrevivência. É a anatomia da alma feminina em colapso.

O problema, como sempre, é a leitura que se faz da obra. Leitura é uma atividade espiritual, ou não é nada. O leitor moderno — sobretudo o acadêmico — tem a estranha mania de considerar a superfície como essência. Lê Ferrante e vê um catálogo sociológico: mulheres da classe baixa, violência patriarcal, mobilidade social, silêncios opressores, blá blá blá. Tudo verdade, tudo irrelevante.

O centro da obra de Ferrante não está no bairro pobre, nem nas tensões políticas, nem mesmo na amizade de Lila e Lenù. Está no abismo ontológico da identidade: o eu que não se sustenta. O eu que dissolve. O eu que trai. Toda a narrativa gira em torno de um tema que a filosofia moderna enterrou sob toneladas de banalidade existencialista: a unidade interior é um milagre. E quando ela se quebra — e sempre se quebra — o que sobra é o ruído da memória, a sombra da infância, a escrita como tentativa desesperada de reconstituir a alma fragmentada.

É curioso que tanta gente leia La figlia oscura e pense que se trata de um “thriller psicológico”. Não é. É uma meditação brutal sobre a culpa materna. Uma mulher que abandona as filhas, que “se torna livre”, e que depois vê essa liberdade como uma espécie de autoexílio infernal. Isso, meus caros, é tragédia grega no coração da modernidade. E é esse tipo de coisa que o leitor contemporâneo — com sua mente viciada em narrativas edificantes — não sabe mais reconhecer.

No fim das contas, a obra de Ferrante é valiosa não por aquilo que ela diz, mas por aquilo que ela permite que vejamos, se ainda temos olhos. Sua literatura não é “feminina” no sentido estúpido da militância literária. É feminina no sentido eterno: ali onde a forma humana se contorce entre o amor e o desespero, entre o ventre e o espírito, entre a memória e o esquecimento.

Elena Ferrante é uma escritora de primeira grandeza — apesar de si mesma. O anonimato não a protege: a enfraquece. Sua literatura resiste não porque ela se esconde, mas porque, ao contrário, ela se entrega por inteiro naquilo que escreve. A ausência do rosto é apenas uma última vaidade de uma cultura que tem horror à presença real — e à verdade que dela emana.

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