“A fantasia não é um refúgio: é o lugar onde a realidade se despe da ilusão do poder.”A pergunta não é por que a direita se sente em casa na literatura fantástica — mas por que ela acredita ser a única moradora legítima desse castelo simbólico.
Quando um político ou bilionário se vê num espelho feito de mitos, espadas e reis antigos, não está sonhando: está legitimando uma ordem que o beneficia. A fantasia — esse território fértil, desmesurado, profundo — tornou-se o playground simbólico de quem quer restaurar o passado, mas apenas o passado que lhe convém.
Porém, o erro da esquerda, desde o século XIX, foi abandonar esse campo. Deixou que a fantasia se tornasse instrumento de restauração, quando deveria ser o laboratório da utopia.
A direita ama a fantasia porque ali encontra uma ilusão de ordem natural: reis justos, linhagens puras, distinções inatas entre os seres — elfos superiores, orcs degenerados, magos sábios, camponeses mudos. Tudo isso alivia o pânico contemporâneo da indeterminação. A fantasia oferece clareza onde o mundo oferece ambiguidade.
Mas toda clareza é suspeita.
Porque a verdade da fantasia não está no que ela afirma, mas no que ela denuncia sem querer. A estética da nobreza, a beleza do herói, a ordem do castelo — tudo isso, visto de fora, é um cemitério simbólico onde enterramos a complexidade do real.
Quando Ursula Le Guin escreve Terramar, ela não está inventando uma mitologia alternativa. Está reescrevendo o mito a partir de outra ótica: o mago não conquista, aprende. O poder não se impõe, equilibra. O herói não vence, abdica.
Esse é o gesto que a direita não compreende — e que a esquerda esqueceu de reivindicar.
A fantasia verdadeira não é sobre tronos, mas sobre mapas. Ela desenha mundos. E o mapa de Tolkien, por mais belo, é um mapa que exclui: não há camponesas que governem, não há mestiçagens simbólicas, não há ambiguidades morais fora de Gollum.
A direita ama esse mapa porque ele é familiar: há um lugar para cada coisa. Mas a fantasia pode traçar outros mundos — com margens móveis, mares que pensam, cidades que nascem em coletivos.
N.K. Jemisin faz isso. Nnedi Okorafor também. Le Guin, Octavia Butler, Naomi Mitchison. Mulheres e autores racializados, queer, exilados — todos reescrevendo o espaço mítico com novos centros gravitacionais. E isso a direita ignora porque sua bússola só aponta para o passado.
A fantasia de esquerda não é “progressista” no sentido panfletário. Ela é simbólica. Derruba arquétipos antigos com novas imagens. Apresenta o herói como um coletivo, o vilão como uma estrutura, o final feliz como um processo — nunca uma volta ao lar, mas a invenção de um lar que ainda não existe.
E se a direita vê em Tolkien um manual de política, a esquerda deveria ver em Le Guin uma profecia: o mundo só muda quando aprendemos a narrá-lo diferente.
A verdadeira luta não é entre luz e trevas, mas entre a fantasia como instrumento de ordem e a fantasia como gesto de liberdade.
Não se trata de disputar Tolkien, mas de reconhecer que há mais de um Anel. A fantasia é um espelho partido — e cada estilhaço mostra uma ideologia.
A esquerda, se quiser sobreviver à tecnocracia que a esvaziou e ao cinismo que a corrompeu, precisa voltar a sonhar com mundos. Não com programas de governo. Mas com fábulas, cosmogonias, mitologias. Porque quem perde o mito, perde o povo. E quem perde o povo, perde o mundo.
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