A Prosa, a Prolixidade e o Fedor da Estante de Autoajuda: ou por que você não escreve bem



Comecemos pelo óbvio: escrever bem é uma arte — e como toda arte, exige muito mais do que a triste soma de regras gramaticais e fórmulas estilísticas. Exige alma. Exige visão. E — me perdoem os coachs literários de Instagram — exige mundo.

Sim, é verdade: o sujeito que acha que escrever bem é meter uma vírgula onde “manda a norma culta”, seguido de um advérbio elegantemente pomposo, geralmente também acredita que política é sobre “bons gestores” e que Camus é um coach da resiliência emocional. Estamos falando de um problema de repertório, claro. Mas também de um problema mais profundo: uma recusa em compreender o que é linguagem.

A linguagem não é um espelho cristalino da realidade. Não é neutra. Não é uma vitrine de palavras sofisticadas nem um desfile de aforismos de LinkedIn. A linguagem é uma faca. É instrumento e violência, é escolha e silêncio. É política pura — e disso, o pessoal que vive colecionando frases do Cortella e parágrafos do Pondé ainda não entendeu nada.

Veja: vivemos numa era em que boa parte da classe média letrada (essa triste massa ressentida que acha que cultura é sinônimo de bons modos) cultiva um fetiche obsceno pela estética “limpa”. O texto bom é o “bem escrito”, e o “bem escrito” é o que soa acadêmico, objetivo, impessoal — ou seja, mortiço, seco, esvaziado de qualquer tensão.

Essa gente não leu Bakhtin, nem vai ler. Não entende que há vozes, há embates, há polifonia — e que o romance, como forma, é uma arena de confronto entre discursos sociais. Preferem acreditar que Machado era um elegante cronista da alma humana, quando na verdade era um sabotador de sentidos, um destruidor sutil de certezas, um prosador de veneno lento.

O leitor conservador (de esquerda ou de direita — o conservadorismo estético é um vírus multiespectro) exige clareza, exige coerência, exige o “português correto”. Ele teme o erro, o tropeço, o exagero. Pois bem: que vá se tratar, porque literatura, quando é grande, erra de propósito.

Só existe um motivo para escrever literatura hoje — e não é para “comunicar melhor” nem “expressar sentimentos”. O único motivo válido é o enfrentamento. O enfrentamento com a linguagem, com a tradição, com a história, com os clichês.

Clichês, aliás, não morrem à toa. Morrem de excesso de uso. Mas também vivem — e às vezes são como ervas daninhas. Você os remove de um trecho, e eles reaparecem no parágrafo seguinte, mais resilientes, mais adaptados. O clichê é uma espécie que sobrevive por adequação — mas cabe ao escritor tratá-lo com desconfiança. Ou ironia. Ou perversidade.

Não se escreve literatura apenas para dizer algo bonito. A boa prosa não é aquela que impressiona pelo momento-a-momento, mas a que serve a um projeto — estético, político, existencial. E o projeto, aqui, não é a moral da fábula. É o modo como o texto configura o mundo que propõe. A prosa não é uma vitrine: é uma estrutura viva que reage às forças da própria narrativa.

Por isso a prosa rebuscada pode ser genial — e pode ser um lixo. Depende do quê? Do uso. Da intenção. Da coerência interna. Quem acha que escrever bem é “evitar adjetivos” ou “escrever como Hemingway” deveria ser proibido de usar teclado. Há personagens que só podem existir se falarem torto. Há narradores que só fazem sentido se se encharcarem de metáforas ruins. Há cenas que exigem, sim, uma cacofonia barroca — e, em outros momentos, uma secura documental.

A exigência de “beleza” constante na prosa literária é coisa de quem confunde romance com concurso público.

Outro ponto crucial: quantidade de leitura não é sinônimo de repertório. Há quem leia cinco romances por mês e, mesmo assim, escreva como redator de panfleto de farmácia. Não porque seja burro, necessariamente, mas porque só lê variações de si mesmo.

A bolha do best-seller de nicho é uma armadilha. A bolha do cânone também. A prosa precisa de atrito, de fricção, de contraste. Precisa do ridículo, do estranho, do ruim que é bom e do bom que parece ruim.

Sim: Joyce escreveu mal de propósito. Clarice é incompreendida por ser densa, mas também porque às vezes é tosca, e essa tosquice é parte do jogo. Raduan é minimalista porque o projeto pede — e mesmo assim seu minimalismo é febril, cheio de tensão.

A maior tragédia da formação literária brasileira é que muita gente lê Machado, mas ninguém lê os parágrafos errados dele — os truncados, os indecisos, os exasperados. Preferem citar o “ao vencedor, as batatas” e esquecem o cinismo ácido que perpassa tudo.

Hoje, qualquer adolescente com acesso à internet consegue pedir para um robô escrever um texto “bem escrito”. Isso é o triunfo da mediocridade sintática. E é exatamente por isso que a literatura precisa cada vez mais de ruído, falha, erro e fratura.

O que diferencia uma boa prosa de um bom parágrafo? A capacidade de sustentar um projeto. A boa literatura não é uma coleção de frases sublinháveis, mas uma arquitetura simbólica onde até os clichês têm função.

Se você quer mesmo escrever bem, comece parando de tentar escrever bem. Escreva de acordo com o que o seu projeto pede. E se você não tem projeto, talvez você não esteja escrevendo literatura — esteja apenas tentando impressionar uma plateia imaginária de professores de redação.

Todo grande prosador é, no fundo, um sabotador da linguagem. Sabe usar o lirismo — e sabe ironizá-lo. Sabe apelar ao clichê — e depois desmontá-lo. Sabe parecer feio — e ser genial.

A pior prosa é a que quer apenas agradar. A melhor é a que se arrisca a desagradar, se isso fizer parte da coerência de seu mundo narrativo.

Em tempos de inteligência artificial e literatura pasteurizada, o maior ato de resistência é escrever algo que não cabe numa planilha, que não serve para citação, que não funciona como tuíte.

Ou, em outras palavras: escreva como se a linguagem ainda importasse. Porque ela importa.

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