O Silêncio como Última Utopia


A ideia de que a intimidade possa ser resgatada é, como tantas outras esperanças modernas, uma ilusão reconfortante. As pessoas falam em “proteger” a vida interior como se esta fosse uma herança natural, um recurso perene que nos acompanha desde sempre. Mas a interioridade não é um dado da condição humana; é um luxo histórico, um subproduto de sociedades em que havia ainda zonas de sombra, intervalos de silêncio e limites ao olhar dos outros. No mundo contemporâneo, onde toda experiência deve ser exibida para adquirir valor, não há razão para supor que essa intimidade sobreviverá.

Michel Houellebecq, em Extensão do Domínio da Luta, captou esse esgotamento com precisão clínica. Seu narrador não é um rebelde ou um herói, mas um homem vazio, tão exausto de si mesmo que se apega a sistemas — sexuais, laborais, virtuais — apenas para evitar a vertigem do vazio. Não há aí uma crítica moral, mas uma constatação: a necessidade de se exibir não nasce da abundância, e sim da indigência. O exibicionismo é o instinto de autodefesa de uma subjetividade que não suporta o próprio peso.

Thomas Bernhard, em O Náufrago, oferece uma alternativa — mas não uma solução. O pianista que renuncia ao mundo para se refugiar na contemplação não descobre serenidade, mas apenas uma forma mais refinada de asfixia. Sua vida, reclusa e obsessiva, não aponta para uma verdade mais elevada: é um gesto de negação, uma recusa à vulgaridade. O recolhimento, para Bernhard, é resistência estética, não redenção espiritual. Não há transcendência em seu monólogo sufocante; há apenas o som de uma mente tentando manter-se íntegra antes de colapsar.

Ambos, Houellebecq e Bernhard, sabem o que a maioria de nós se recusa a admitir: não existe “cura” para a erosão da vida íntima. Há apenas duas respostas possíveis — anestesia ou isolamento. Uma nos dissolve em imagens e algoritmos; a outra nos condena a um silêncio que pode ser tão insuportável quanto o ruído que tentamos evitar.

Os gregos, que não precisavam acreditar em um progresso inevitável para aceitar o destino humano, compreenderam bem essa fragilidade. Em Heródoto, o rei Candaules paga com a vida o desejo pueril de exibir o que deveria ser preservado. Não há lição moral, apenas a demonstração de uma lei implacável: aquilo que é exposto perde a sua força. A intimidade não sobrevive ao olhar público porque, uma vez convertida em espetáculo, deixa de ser intimidade.

Os modernos, herdeiros tardios do cristianismo e de suas ilusões de salvação — agora recicladas em promessas seculares de autenticidade e autoexpressão — continuam a fingir que existe um meio-termo, que é possível “compartilhar” e ainda assim preservar uma essência privada. Mas essa essência é um mito. Somos criaturas moldadas pelo contexto, pelos olhares, pelos mercados que nos rastreiam. Não há “eu” autônomo a ser protegido, apenas fluxos de desejos, medos e distrações que o capitalismo digital, com sua precisão de laboratório, sabe explorar.

Aqueles que falam em recuperar a vida interior soam como pregadores que prometem o paraíso num mundo que já não acredita em deuses. A verdade — se a palavra ainda tem algum uso — é que a intimidade, como a entendíamos, está morrendo. O silêncio, a sombra, o segredo — tudo isso se torna residual, como rituais tribais que persistem apenas em bolsões esquecidos do mundo.

Talvez reste apenas a escolha entre duas formas de vazio: o vazio barulhento das redes, que nos poupa do confronto com nós mesmos, e o vazio denso do isolamento, que nos arranca qualquer ilusão de significado. Em ambos os casos, não há redenção — apenas estilos diferentes de suportar a mesma condição.

A intimidade, hoje, não é uma promessa de plenitude, mas uma relíquia. Preservá-la, quando possível, não porque nos salva — mas porque, como as últimas florestas ou os livros impressos, ela oferece uma beleza efêmera antes de desaparecer. O gesto de resistência não é um caminho para a transcendência. É apenas uma maneira de encarar o fim com alguma dignidade.

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