É um sintoma tipicamente humano — e, portanto, tragicômico — imaginar que a expansão de um fenômeno na superfície implica seu aprofundamento na essência. Estamos vendo, no Brasil, uma espécie de primavera literária digital, onde o amor pelos livros brota como as flores de plástico de um jardim hidropônico: vistosas, democráticas e inteiramente artificiais.
Nunca se falou tanto sobre livros, dizem. Nunca se comentou tanto, nunca se compartilhou tanto, nunca se emocionou tanto. Ora, é exatamente isso que me preocupa.
O entusiasmo moderno por livros — tal como o fervor religioso dos camponeses da Idade Média — não garante, de forma alguma, qualquer contato com o objeto de adoração. Em ambos os casos, o desejo é sincero, mas a compreensão é ilusória. Não se lê para entender, mas para se comover. A literatura converte-se numa selfie da alma: “Veja o que li, veja quem sou, veja como sinto.” O livro, uma vez lugar de confronto com o trágico e o sublime, é hoje apenas uma legenda de Instagram.
E, claro, como toda boa ilusão moderna, essa também é vendida com o selo da emancipação. Diz-se que estamos formando leitores, democratizando o saber, “dando voz” à experiência literária. Mas o que se forma, no fundo, é uma massa de leitores encantados consigo mesmos — uma legião de Narcisos hipermidiáticos afogados no reflexo de suas impressões.
Ora, é preciso dizer o óbvio: gostar de um livro não equivale a entendê-lo. E comentar sobre um livro, por mais fervorosamente que se o faça, não significa compreendê-lo com profundidade — tal como uma paixão platônica por uma equação não faz de ninguém um matemático.
Nesse cenário entra, como uma figura espectral que ressurge em meio à mediocridade pós-moderna, Otto Maria Carpeaux. Um homem cuja erudição faria corar os algoritmos da Amazon. Um crítico em extinção, forjado no calor dos impérios que ruíam e nas línguas mortas que ainda cantavam em sua mente. Ele leu tudo, compreendeu quase tudo e teve o mau gosto de escrever isso em português — uma língua que, comovida, ainda não sabe o que fazer com tamanha dádiva.
E que ironia cruel: Carpeaux, o aristocrata do pensamento, é agora redescoberto pelos mesmos leitores que precisam ser salvos dele. Sua obra, tão monumental quanto desinteressada da popularidade, é tratada como um amuleto — citado, reverenciado, mas raramente lido. Como se sua função não fosse iluminar, mas apenas legitimar um verniz de profundidade.
Não é curioso, aliás, que um autor tão avesso à superficialidade esteja sendo instrumentalizado para validar o próprio culto da superfície?
Mas não culpemos os jovens leitores. Eles, afinal, são filhos legítimos de um tempo que trocou a formação pela performance, a crítica pelo afeto, a estética pelo algoritmo. Em sua ânsia por sentido, fazem dos livros o que os alquimistas medievais faziam com os metais: tentam transmutar emoção em sabedoria, experiência em verdade.
E falham, claro — mas com muita ternura.
O que está em jogo aqui não é apenas a literatura, mas o próprio ideal de conhecimento. O que Carpeaux representa — essa exigência de forma, esse rigor simbólico, essa paixão pela complexidade — não pode ser ensinado por vídeos curtos ou resumos afetuosos. É um tipo de disciplina que exige silêncio, tempo e, acima de tudo, humildade diante do que não se entende à primeira leitura.
Mas eis aqui o ponto em que tudo se revela: talvez não queiramos compreender. Talvez o que desejemos, no fundo, seja apenas nos sentir bem com a ideia de estarmos lendo. A leitura, como a fé, tornou-se um fim em si mesma. E é exatamente por isso que precisamos de guias — não apenas para aprender a ler, mas para aceitar o que a leitura nos revela: que somos, na maioria do tempo, ignorantes bem-intencionados.
O culto atual da literatura é o último capítulo de uma longa história: a tentativa humana de transformar o conhecimento em consolo. E como todas as tentativas anteriores — das religiões às ideologias, da ciência ao coaching — essa também terminará em decepção. Pois ler, de verdade, não conforta: desorienta, inquieta, humilha.
Mas há beleza nisso. Uma beleza trágica, quase redentora. Porque no instante em que deixamos de buscar nos livros um reflexo de nós mesmos, e os enfrentamos como espelhos quebrados de um mundo maior do que o nosso ego, alguma coisa — silenciosa, profunda — finalmente se abre.
É nesse momento que Otto Maria Carpeaux deixa de ser um ídolo decorativo e torna-se, de fato, um mestre.
E é nesse momento — raro, irreversível — que a literatura cumpre sua promessa: não nos dar razão, mas nos tirar o chão.
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