Resposta direta (em tom ácido, a Rothman e Cowen)



Senhores Rothman e Cowen,

Leio suas projeções sobre a leitura e a imortalidade digital com uma mistura de fascínio e assombro. Fascínio porque é sempre revelador ver como o intelecto humano continua a se iludir com a ideia de progresso, mesmo quando este já se mostra como caricatura de si próprio. Assombro porque, ao celebrar a preservação infinita dos rastros digitais, parecem ignorar o que qualquer leitor atento da história deveria saber: um arquivo que tudo guarda é indistinguível do esquecimento absoluto.

Rothman sugere que os livros, outrora cadáveres de papel, renasceram em forma de máquinas que conversam. Mas estas não são reencarnações culturais; são autômatos que trituram texto sem distinguir sabedoria de lixo. São o cemitério vivo da linguagem, não sua ressurreição. A vingança dos livros não é gerar novas vozes, mas assistir, em silêncio, enquanto sua herança se dissolve numa proliferação de simulacros.

Cowen, por sua vez, vê na acumulação de cada migalha digital uma forma de imortalidade. Como se ser lembrado por uma IA fosse preferível a ser esquecido pelos homens. Como se a posteridade precisasse conhecer nossas opiniões sobre o trânsito de uma terça-feira em 2023. Essa fé no armazenamento perpétuo é mais religiosa do que científica: promete salvação na forma de um espelho eletrônico que nos devolve a ilusão de permanência, sem perguntar se há algo ali que mereça durar.

Nenhum de vocês parece considerar que a leitura – aquilo que realmente importava nos livros – exige esquecimento, silêncio e julgamento. Sem esses elementos, a memória digital será apenas uma maré de fragmentos, uma cacofonia de mortos e vivos, humanos e máquinas, indistintos em um presente eterno. É isso o que vocês chamam de futuro?

Talvez, como de costume, a verdadeira lição seja mais sombria. O que está diante de nós não é uma nova era de leitura, mas um simulacro de cultura. E, como todos os simulacros, sobreviverá não por mérito, mas por inércia – até que, de forma igualmente arbitrária, seja substituído por outro ruído.

As narrativas sobre o “parêntese de Gutenberg” e o “parêntese de Zuckerberg” partem de uma suposição reconfortante: a de que a comunicação humana segue ciclos naturais, alternando entre centralização e dispersão, fixidez e fluidez. Tais hipóteses, por mais elegantes que sejam, falham em reconhecer a diferença radical do presente. O que emerge agora não é outro ciclo, mas uma mutação ontológica. Pela primeira vez, a linguagem não é apenas instrumento humano, mas matéria-prima para entidades que não compartilham nossas limitações biológicas ou cognitivas. A leitura não retorna ao passado; ela se torna irreconhecível.

Tyler Cowen celebra a capacidade das máquinas de nunca esquecer. Mas a memória perfeita não é bênção; é maldição. As culturas humanas sempre dependeram da capacidade de julgar, selecionar e descartar. A história que sobrevive não é a soma de todos os vestígios, mas o resultado de um processo seletivo que transforma resíduos em sentido. Uma cultura incapaz de esquecer se afoga em seu próprio acúmulo. É isso que a era da IA promete: um oceano de arquivos onde toda experiência humana é nivelada, e onde a diferença entre uma grande obra e um post irrelevante é apenas de bytes.

A chamada “conversa” promovida por inteligências artificiais não é diálogo, mas processamento. Elas não leem, não compreendem, não julgam. São mecanismos de recombinação, indiferentes ao sentido. Tomar essa produção por continuação da leitura é como confundir a soma de todos os ruídos de uma cidade com a sinfonia de uma orquestra. Há som, mas não música.

O que resta da leitura, nesse contexto, não é um renascimento, mas uma prática residual. Como o cultivo de manuscritos após a invenção da imprensa, ou a persistência de vinil em um mundo de streaming, a leitura profunda sobreviverá em guetos culturais. Não será moda, nem mainstream, nem útil. Será, paradoxalmente, aquilo que sempre foi para poucos: um ato de resistência contra o ruído, uma tentativa de lembrar que cultura não é a soma de dados, mas o espaço em que o silêncio e o julgamento têm lugar.

Os livros não se vingam criando máquinas que os emulam. Sua vingança é outra: sobreviver, anacrônicos, como testemunhas mudas de uma civilização que confundiu preservação com significado. No dia em que as máquinas falarem sozinhas, e os humanos ouvirem apenas ecos, talvez alguém, em silêncio, ainda abra um livro – não porque ele guarde tudo, mas porque ali, pela primeira vez em muito tempo, encontra algo que o esquecimento e a solidão tornam verdadeiro.

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