Flaubert não fugiu da vida burguesa apenas porque a desprezava. Fugiu porque não havia nada nela que pudesse justificar a lentidão que o trabalho literário exigia. A doença foi um álibi conveniente, mas também uma metáfora: a vida comum não lhe dava fôlego, apenas convulsões. O ataque epiléptico, que teria arruinado uma carreira jurídica, ofereceu-lhe algo mais valioso — a oportunidade de abandonar a vida útil para se entregar a uma vida que só faria sentido no ritmo da frase.
Não devemos romantizar esse isolamento. Croisset não foi um retiro bucólico, mas uma espécie de cela monástica construída sob medida. O escritor moderno, rodeado por telas e prazos, talvez veja nesse confinamento uma extravagância. Mas para Flaubert a escrita não era expressão de si: era o trabalho de se dissolver, de se apagar na procura da palavra justa. O escritor não aparece no texto senão como ausência. É por isso que cada frase exigia não apenas dez versões, mas dez renúncias.
A lentidão, nesse sentido, não era método, mas destino. Flaubert não buscava a eficiência do artesão, nem a inspiração do visionário. Escrever para ele era suportar a resistência da linguagem, como quem enfrenta uma matéria bruta que jamais se entrega por completo. Se a literatura valia mais do que a vida, era porque nela o banal se deixava lapidar até adquirir a densidade de algo definitivo. A vida vivida era transitória demais; a frase, quando finalmente encontrada, tinha o peso da eternidade.
O contraste com o nosso tempo é inevitável. Nós acreditamos que o valor da vida está em multiplicar experiências, como se cada viagem, cada encontro, fosse uma conta acrescida no banco da memória. Flaubert acreditava no oposto: a vida só se tornava experiência quando era trabalhada até perder sua aparência de fato e ganhar forma literária. Onde hoje celebramos a espontaneidade, ele cultivava a repetição exaustiva. Onde hoje buscamos autenticidade, ele buscava precisão.
Há algo de cruel nessa fidelidade. Ao limitar os encontros com Louise Colet, Flaubert não seguia uma regra de asceta, mas uma lógica implacável: cada visita era um custo incalculável para a continuidade do trabalho. Se o amor interferia no ritmo da frase, o amor era posto de lado. Não se trata de um sacrifício heróico, mas de uma simples hierarquia. O que importava era a escrita — e, se necessário, tudo o mais deveria ser descartado.
Esse rigor não ensina nenhuma lição moral. Não há virtude em passar cinco dias sobre uma página. Não há recompensa em gritar frases até perder o ar. O que se revela em Flaubert é apenas a contingência de uma vida orientada por um impulso que não se escolhe. Ele escrevia não porque a escrita era sublime, mas porque não havia outra forma de suportar a realidade.
É tentador pensar que Flaubert escolheu viver menos para que sua obra pudesse viver mais. Mas essa é uma ilusão moderna, que supõe haver uma troca entre vida e arte. Para Flaubert, a vida fora da obra não era perda, porque simplesmente não tinha peso algum. Só as páginas valiam. Só nelas estava o mundo que merecia ser vivido.
A disciplina flaubertiana parece insuportável para nós porque inverte a crença que mais prezamos: a de que é possível conciliar. Queremos viver intensamente e criar intensamente, consumir e produzir sem abdicar de nada. Flaubert nos lembra que toda obra duradoura nasce de uma exclusão. O fio da escrita, como ele sabia, não suporta a dispersão.
No fim, Flaubert não é modelo de nada. Sua vida não oferece receitas, apenas uma constatação sombria: para alguns, a experiência só tem sentido quando transmutada em arte. Para todos os outros, resta o consolo de acreditar que viver já basta.
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