A tradição intelectual moderna costuma separar ficção e verdade como se fossem domínios inconciliáveis. À ficção se concede o espaço da imaginação, da invenção, daquilo que não tem compromisso com a realidade; à verdade se reserva a teoria, a explicação racional, a tentativa de traduzir em conceitos estáveis a experiência humana. Mas essa divisão é um equívoco — e um equívoco perigoso. A literatura de Flannery O’Connor, assim como a de Dostoiévski e Turguêniev, mostra que a ficção não apenas transmite verdades que a teoria é incapaz de alcançar: ela encarna essas verdades, fazendo com que surjam diante de nós como realidades vividas e não como abstrações.
Tomemos o caso do chamado extremismo. Intelectuais contemporâneos se esforçam em explicá-lo como um fenômeno político, um resultado de doutrinas ou ideologias que podem ser refutadas por meio do debate racional. Mas O’Connor, assim como Dostoiévski antes dela, revela que o extremismo não é uma doutrina: é uma atitude diante do mundo. Trata-se de uma recusa, de uma negação que não pode ser desmontada pelo raciocínio, porque não nasce do raciocínio. É a mesma recusa que, em Pais e filhos de Turguêniev, se manifesta como niilismo juvenil; que em Demônios se desdobra em violência revolucionária; e que em Os violentos o arrebatam aparece como fanatismo religioso.
A teoria, por mais sofisticada que seja, tende a reduzir essa atitude a causas externas — econômicas, sociais, psicológicas. A ficção, ao contrário, mostra sua textura interna: o ressentimento, a rivalidade, a necessidade de que a vida adquira um sentido mesmo que por meio da destruição. Como Flannery O’Connor observa, o fanatismo é uma forma de reprimenda. Mas toda reprimenda só existe dentro de uma relação: não há denúncia sem um interlocutor real ou imaginado, não há ira que não seja dirigida a alguém. A teoria esquece esse caráter relacional do fanatismo; a ficção o torna inescapável.
O paradoxo é que a ficção, embora inventada, é mais fiel ao real do que qualquer teoria. Justamente porque não pretende ser definitiva, ela conserva a abertura necessária para que vejamos sempre algo novo. Cada releitura de Dostoiévski ou de O’Connor nos devolve um aspecto diferente do extremismo, da fé, da vingança. Já a teoria, com sua ânsia de clausura, rapidamente se torna obsoleta: basta que as circunstâncias mudem e suas explicações já parecem datadas.
A literatura não oferece soluções. Mas tampouco a vida humana é um problema a ser resolvido. A ficção nos recorda que a condição humana é feita de tensões insolúveis: fé e dúvida, rivalidade e amor, esperança e desespero. É por isso que, diante do fanatismo religioso ou da polarização política, compreender Dostoiévski ou O’Connor pode ser mais fecundo do que recorrer às teorias da moda. A ficção não explica — ela mostra. E, ao mostrar, nos obriga a ver o que as teorias frequentemente ocultam: que por trás da violência ideológica não há uma doutrina consistente, mas uma necessidade humana de sentido, de rivalidade e de vingança.
O erro da modernidade é acreditar que a verdade está na teoria. O mérito da grande literatura é nos lembrar que, se existe alguma verdade acessível, ela só pode ser vivida — e é a ficção que, paradoxalmente, mais fielmente a conserva.
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