As escolas literárias são frequentemente apresentadas como um esforço humano de ordem: categorias, gavetas, linhas de sucessão. Cada movimento seria uma janela para a realidade, um modo de olhar mais penetrante que o anterior. A ilusão é a mesma que atravessa a filosofia e a política: a de que podemos arrumar a experiência humana em esquemas, como quem organiza livros em prateleiras.
Mas a literatura, como a vida, não cabe em rótulos. Tolstói, Dostoiévski, Machado — todos transbordam as molduras em que críticos tentaram fixá-los. O impulso de classificá-los não é diferente da mania moderna de reduzir sociedades e indivíduos a teorias: progresso, razão, revolução. Tudo são narrativas que prometem clareza, quando o que existe, na verdade, é apenas um turbilhão de desejos, ilusões e derrotas.
O realismo se tornou notável justamente por recusar a mentira romântica da grandeza. Mas ele não escapa ao destino que atinge qualquer doutrina literária: também se converte em um estilo de ilusão. Emma Bovary não é apenas um retrato da condição humana — ela é a encenação, em forma de romance, de uma verdade que o próprio Flaubert quis enxergar. Rubião, Liévin, Raskólnikov: todos refletem menos um “diagnóstico” sobre a vida do que a tentativa, sempre provisória, de encontrar sentido na desordem que nunca se fecha.
A suposta “redenção” dos personagens realistas, quando ocorre, não é senão a resignação a uma vida que não oferece justificativa. Liévin encontra paz no cotidiano porque não há outro lugar para encontrá-la. Raskólnikov abraça sua culpa porque não existe redenção fora da aceitação da própria miséria. O realismo não revela um caminho, apenas encena a ausência de qualquer horizonte seguro.
Essa é talvez sua maior proximidade com a vida: não o fato de ser fiel ao “real”, mas de mostrar que o real é incoerente, contraditório e sem promessa de reconciliação. A ironia do narrador realista não é um recurso estilístico, mas uma maneira de lidar com a impossibilidade de qualquer certeza.
A literatura, quando mais honesta, confirma o que todas as tradições filosóficas esquecidas já sabiam: não há progresso no humano, não há pureza a ser descoberta, não há chão firme. Se ainda buscamos nas escolas literárias algum aprendizado, ele é o de que nenhuma escola nos salva. O que resta são histórias — tentativas frágeis de dar forma ao que, no fundo, não tem forma.
O pacto do realismo, portanto, não é o da franqueza, mas o do desengano. Ele nos convida a abandonar a esperança de que a arte, a política ou a razão ofereçam respostas finais. E ao fazer isso, paradoxalmente, liberta-nos: não para viver melhor, mas para viver sem ilusões desnecessárias.
You'll Love These
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Postar um comentário