Contra a Cultura da Autoimagem


Uma das ilusões mais persistentes da era digital é a de que nos tornamos mais comunicativos. Nunca houve tanto discurso, nunca houve tanta exposição do eu. Mas a proliferação de palavras, imagens e confissões não é sinônimo de proximidade. Ela pode significar o contrário: uma multiplicação de máscaras.

As redes sociais não são um espaço de revelação, mas de encenação. O sujeito digital é um ator em tempo integral, obrigado a compor incessantemente a própria persona. O que chamamos de “expressão pessoal” é, na maioria das vezes, uma coreografia de sinais: a foto editada, a opinião calculada, a indignação performática. Não se trata de comunicação, mas de publicidade. O que se anuncia não é o eu real, mas o eu desejável — uma ficção íntima cujo valor se mede em aprovação.

Essa cultura da autoimagem opera segundo uma lógica terapêutica. Já não se trata de buscar a verdade sobre si mesmo, mas de administrar afetos. O sofrimento deve ser narrado, mas de modo que produza reconhecimento e empatia. A dor se converte em capital simbólico, uma moeda de troca no mercado da atenção. A vulnerabilidade é estilizada, estetizada, posta em circulação. Não se sofre em silêncio; sofre-se para ser visto.

Esse deslocamento é sintoma de algo maior. A vida moral, que supunha a existência de critérios objetivos — o bem, o justo, o verdadeiro — foi substituída por uma retórica da sensibilidade. O que importa não é o que é certo, mas o que “me faz sentir mal”. O que importa não é a realidade, mas a intensidade da reação subjetiva. A consequência é um enfraquecimento do juízo: toda crítica é percebida como ofensa; toda divergência, como violência. O espaço público se converte em palco de feridas expostas, mas raramente em arena de ideias.

Não é por acaso que o narcisismo esteja no centro desse regime cultural. Narcisismo não no sentido vulgar de vaidade, mas como uma condição em que o sujeito só existe através do olhar do outro. A aprovação é o oxigênio da identidade. E, como todo oxigênio, quanto mais se respira, mais se depende dele. O resultado é fragilidade: basta a ausência de aplauso para que se instale o ressentimento.

A cultura terapêutica promete cura, mas apenas intensifica a ferida. Pois há dores que não podem ser eliminadas por técnicas emocionais ou por encenações digitais. A mortalidade, a solidão, a perda, o fracasso — esses elementos não negociáveis da condição humana resistem a qualquer estética de autoajuda. A encenação talvez adie o confronto, mas não o dissolve. O mal-estar retorna, sempre.

Não se trata de negar a necessidade de consolo, mas de recuperar a consciência de que nem todo consolo é verdadeiro. A estética da vitimização, ao transformar cada dor em espetáculo, nos impede de reconhecer a dimensão trágica da vida. A tragédia não se resolve com curtidas. Ela exige outra disposição: silêncio, pensamento, talvez até uma dignidade que não precisa ser vista.

O perigo maior é que, ao dissolver a vida moral em autoimagem, perdemos também a capacidade de distinguir aparência e substância. A linguagem é corroída; as palavras se tornam slogans; a verdade, apenas opinião. O mundo se fragmenta em bolhas de emoção simultâneas, onde cada grupo valida apenas a sua própria sensibilidade. Nesse cenário, a censura não aparece como imposição autoritária, mas como consequência inevitável: o que fere meu sentimento deve ser suprimido.

O que vemos, portanto, não é liberdade, mas confinamento. Não uma cultura mais plural, mas mais frágil. O excesso de eu produz a ausência do outro. O excesso de opinião dissolve a possibilidade de juízo. A catarse terapêutica substitui a reflexão moral.

A atitude realmente subversiva, neste contexto, não é exibir mais emoções ou multiplicar confissões. É recusar a encenação. É recuperar o valor da interioridade, que não se publica, não se negocia, não se vende. É aceitar que há dor que não se converte em performance, que há verdade que não cabe em opinião.

A cultura digital nos ensinou a viver diante de um espelho. Talvez seja hora de quebrá-lo.

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