Diplomacia da Floresta: o gesto político de Raoni



A palavra memórias quase sempre sugere complacência. O livro de um homem público costuma ser um monumento à sua própria imagem — um espelho polido, sem as rugas da contradição. Mas em Memórias do cacique, Raoni recusa esse artifício. Seu relato é simultaneamente um arquivo etnográfico e um gesto de combate. Não se trata de uma lembrança, mas de uma convocação.

A leitura de Raoni nos obriga a reconhecer um desconforto antigo: nós, os ocidentais — e digo “nós” como cúmplices — cultivamos uma visão caricatural dos povos indígenas. Projetamos neles tanto o mito do “bom selvagem” em harmonia imaculada com a natureza quanto a fantasia do guerreiro feroz que nos ameaça. Raoni implode essa dicotomia. Ele se apresenta como guerreiro e diplomata, xamã e estrategista, homem de rituais e de gabinetes. Ele sabe que a verdade não está em absolutos estéreis. O mito e a política convivem na mesma carne.

Não devemos romantizar Raoni. É precisamente a recusa ao romantismo que torna seu testemunho insuportável — e necessário. Ao narrar os ataques de seu povo, ao relatar a fome e a guerra, ele se afasta da versão higienizada que a esquerda e a direita preferem: uns o querem como mártir intocado, outros como obstáculo exótico ao “progresso”. Ele não é mártir nem obstáculo. Ele é adversário.

A diplomacia de Raoni não é apenas política, é estética. Como toda grande performance pública, carrega a dimensão do espetáculo — pensemos em suas viagens internacionais, na aliança com Sting, nas falas dirigidas a presidentes. O gesto é calculado, mas não vazio: é um uso radical da visibilidade. O adereço labial, o cocar, a fala pausada em sua língua materna traduzida para a nossa — tudo são signos que desestabilizam o interlocutor. Raoni pratica o que eu chamaria de estética da desorientação: obriga os brancos a se confrontarem com sua própria incapacidade de entender a floresta.

Eis a ironia: nós — herdeiros de séculos de filosofia, ciência, arte — estamos à beira da catástrofe climática. Eles — que jamais pretenderam “dominar a natureza” — conhecem o que nós estamos destruindo. O contraste é insuportável. Por isso a presença de Raoni na rampa do Planalto, ao lado de Lula em 2023, é mais do que simbólica: é uma cena de justiça poética, quase litúrgica. O cacique não ascende apenas ao poder político; ele expõe o fracasso da modernidade em sustentar sua própria promessa de futuro.

A força de Memórias do cacique não está apenas no que conta, mas naquilo que nega: o livro não nos oferece absolvição. Não há catarse. Não nos convida a celebrar um herói folclórico. Obriga-nos, ao contrário, a ver na luta de Raoni um diagnóstico do nosso tempo. Ele não fala só de sua aldeia ou de seu povo. Fala de todos nós, de um planeta em ruínas.

O mais perturbador, talvez, seja sua franqueza ao relatar os sonhos em que confronta Bolsonaro. O sonho, aqui, não é metáfora. É política em outro registro. É a lembrança de que a racionalidade ocidental não esgota as formas de intervenção no mundo. O sonho é tão real quanto a assinatura de uma demarcação.

Raoni é, enfim, um dos intelectuais mais consistentes de nosso tempo. Não porque escreve tratados, mas porque vive na interseção entre mito e pragmatismo. Como Davi Kopenawa e outros líderes, ele não oferece “folclore” nem “tradição” para serem consumidos como exotismo. Ele nos oferece conhecimento, que só parece inacessível porque insistimos em não escutar.

Se há uma lição aqui — e Sontag sempre desconfiava das lições — é que não podemos mais ler os indígenas como personagens de um drama alheio. Eles são os protagonistas do drama que nos envolve a todos. Raoni nos pede menos empatia do que atenção. Menos lágrimas, mais responsabilidade.

Eis a verdade desconfortável: não é a floresta que precisa de nós. Somos nós que precisamos dela.

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