Resenha de "Como nasce um miliciano: a rede criminosa que cresceu dentro do Estado e domina o Brasil"



Cecília Olliveira abre seu livro com um aviso que deveria ecoar como um presságio: “este não é um livro só sobre bandidos”. A advertência é crucial, pois revela a falácia que molda a narrativa oficial sobre as milícias brasileiras. Ao invés de aberrações marginais, tratadas como desvios ocasionais, Olliveira mostra que as milícias são a expressão mais fiel do Estado contemporâneo no Brasil: um Estado que ensina, treina, remunera e, por fim, converte parte de seus agentes em mercadores de violência.

Não se trata, portanto, de um “poder paralelo”. O paralelo é ilusório. O que emerge em suas páginas é a constatação de que as milícias são o próprio Estado em sua versão mais desnuda — desprovida da retórica de legalidade, mas munida de todo o aparato institucional. O miliciano não é o inimigo do Estado; ele é seu filho legítimo.

A trajetória de Cabo Bené, fio condutor do livro, é paradigmática. Um homem que ingressa na Polícia Militar com o juramento de proteger e, gradualmente, atravessa a linha que o separa da criminalidade. Mas essa passagem não é um salto no vazio. É, antes, uma transição natural em um ambiente onde a lógica da guerra contra inimigos internos já dissolveu as fronteiras entre polícia e crime. A linha, como mostra Olliveira, é tênue a ponto de se tornar ficção.

O mérito do livro é não se deter na psicologia de indivíduos, mas mapear a estrutura que os produz. A cultura da militarização, longe de ser um resquício da ditadura, tornou-se princípio organizador da vida política brasileira. A crença de que a violência pode ser purificadora — de que eliminar o inimigo é condição para a ordem — foi adotada por governos de diferentes matizes ideológicos. É nesse terreno fértil que as milícias prosperaram, apresentadas inicialmente como guardiãs da comunidade, até se revelarem como empresas de proteção e de morte.

O que impressiona, e ao mesmo tempo aterroriza, é a adaptabilidade dessas organizações. Da extorsão de comerciantes à gestão de serviços urbanos como água, transporte ou telecomunicações, as milícias colonizaram as esferas da vida cotidiana. Sua força não reside apenas nas armas, mas na capacidade de transitar entre legalidade e ilegalidade, mercado formal e subterrâneo. A milícia não é a negação da modernidade, mas sua versão mais crua: um híbrido de empresa e exército, moldado para extrair lucro da vulnerabilidade social.

O alerta de Olliveira é contundente: insistir na lógica de guerra como solução para o problema é equivalente a “apagar fogo com gasolina”. Cada operação militarizada, cada incursão violenta em territórios populares, reorganiza o tabuleiro, mas mantém intactas as estruturas que alimentam a proliferação miliciana. Não há guerra contra as milícias porque a guerra é a linguagem que as faz nascer e se fortalecer.

Esse diagnóstico ecoa além do Brasil. A fragilidade dos Estados modernos não se expressa apenas na incapacidade de conter o crime, mas no modo como se confunde com ele. A esperança liberal de que instituições sólidas garantiriam a separação entre ordem e desordem revela-se, mais uma vez, ingênua. Como tantas vezes na história, o poder legal e o ilegal não se opõem: eles se complementam.

O livro de Cecília Olliveira, portanto, não é apenas uma investigação jornalística sobre a ascensão de um ex-policial convertido em chefe miliciano. É um retrato de um país onde a segurança se transformou em mercadoria, onde o Estado e o crime se entrelaçam em um pacto tácito, e onde a violência deixou de ser exceção para se tornar regra. A pergunta que atravessa suas páginas — “por que isso deveria importar para você?” — só admite uma resposta. Importa porque, em uma sociedade que vive sob a sombra das milícias, nenhum espaço permanece imune. O que se passa nas vielas da Baixada Fluminense é apenas o prenúncio do destino reservado a todos os que acreditam viver fora de seu alcance.

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