Publicar uma tradução é, para uma editora moderna, o equivalente civilizado do antigo comércio de escravos. O tradutor — esse ser intermediário entre o verbo e o mundo — trabalha meses sobre um texto, decifra o espírito de outro homem, transforma-o em corpo verbal novo, e no fim descobre que o espírito não paga imposto, mas a alma, sim. Recebe migalhas, quando recebe. E o público, cada vez mais estupidificado, lê aquilo como se o texto tivesse brotado do nada — de uma “equipe editorial com auxílio de ferramenta de inteligência artificial”, segundo a novilíngua corporativa do século XXI.
O episódio narrado na revista piauí — a tradutora Paula Carvalho que traduziu um livro de 345 páginas e recebeu uma ninharia — é apenas um sintoma. É o retrato perfeito de uma civilização que não reconhece mais a hierarquia do espírito, porque já não distingue o espírito do algoritmo. Quando o tradutor é substituído pelo DeepL e o editor se gaba do “bom resultado”, o que temos não é progresso técnico: é a abdicação do homem diante da máquina. A tradução feita por uma inteligência artificial não traduz: transpõe. É o transporte de cadáveres linguísticos de um idioma para outro.
A profissão do tradutor nasceu da reverência. O tradutor era o sacerdote do verbo — aquele que descia ao inferno das palavras alheias para arrancar-lhes o sentido e trazê-lo purificado à luz da sua língua. Quando José Saramago dizia que “os tradutores fazem a literatura universal”, exprimia, sem o saber, uma ideia teológica: a tradução é a comunhão das línguas, e o tradutor é o ministro desse sacramento. Hoje, porém, os ministros foram expulsos do templo e substituídos por operadores de software.
As editoras, como toda burocracia moderna, são movidas por uma lógica de contabilidade e ressentimento. O tradutor é o tipo de profissional que não se enquadra: trabalha sozinho, pensa demais e não se deixa transformar em “recurso humano”. Por isso, é humilhado. Não é à toa que o coletivo Quem Traduziu nasce com mais de seiscentas assinaturas: é o gemido de uma classe que percebeu tarde demais que a cultura que serviu já não existe. A cultura virou mercado; o mercado, um simulacro; e o simulacro, o senhor de tudo.
Não me espanta que o Sindicato dos Tradutores prefira “não se envolver”. O sindicalismo moderno é a arte de negociar a própria escravidão em suaves prestações. Enquanto isso, as tradutoras, mal pagas e cansadas, vão às festas literárias exigir o óbvio: que seus nomes apareçam na capa. É comovente, mas inútil. Quando a cultura de um país precisa de um manifesto para lembrar que quem traduziu um livro é um ser humano, é sinal de que o idioma já entrou em coma.
A situação se agrava com a entrada triunfal da inteligência artificial. Chamam de “inteligência” o que não passa de uma estatística automatizada de probabilidades linguísticas. A máquina não compreende nada — apenas repete padrões, como um papagaio que faz doutorado em semiótica. E o tradutor humano que aceita servir de revisor da máquina não será seu mestre, mas seu escravo. “Aprender programação”, como sugerem alguns, é o primeiro passo para o suicídio espiritual da profissão.
O tradutor verdadeiro não traduz palavras: traduz mundos. Ele não é o funcionário do texto, mas seu ressuscitador. Gregory Rabassa não “interpretou” Cortázar ou García Márquez — ele os recriou, no sentido mais radical da palavra. Quando escolheu “to discover” em vez de “to know”, ele não seguiu uma regra; seguiu o sopro do espírito. Nenhuma inteligência artificial, por mais “treinada”, poderá sentir o estremecimento metafísico que separa conhecer de descobrir.
A tradução é uma forma de amor — e o amor, dizia Santo Agostinho, é o peso da alma. O tradutor carrega o peso da alma de outro homem, em outra língua. O que o mercado faz hoje é transformar esse ato de amor em prestação de serviço, e o tradutor, em digitador terceirizado.
Mas há um consolo: quando tudo se automatiza, o gesto humano autêntico volta a brilhar como um milagre. Chegará o dia em que uma tradução feita por uma pessoa será vendida como se fosse vinho antigo — rara, imperfeita, mas viva. A máquina pode imitar o ritmo, a cadência, o léxico; mas não pode imitar o silêncio entre as palavras, onde mora o sentido.
No fundo, a luta dos tradutores não é econômica — é ontológica. Trata-se de decidir se a linguagem é coisa viva ou ferramenta morta. Se vencerem os algoritmos, perderemos não apenas a literatura universal, mas a própria humanidade. Porque o que nos faz humanos não é a capacidade de comunicar, mas de compreender — e a compreensão começa onde a tradução se torna impossível.
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