A Comédia da Rendição: sobre o prazer moderno de ajoelhar-se



Não é preciso crer em Deus para se submeter a Ele. Basta não crer em mais nada. O romance de Michel Houellebecq, Soumission, é uma parábola não sobre fé, mas sobre fadiga — uma meditação cruel sobre o modo como o cansaço substituiu a convicção na alma moderna. François, o protagonista, não se converte ao islamismo: ele desaba nele, como quem cai na cama após uma vida desperdiçada em debates inúteis.

A França de Houellebecq é a civilização do esgotamento — e François é seu corpo fatigado. Ambos chegam à mesma conclusão: resistir exige energia, e energia é um luxo de quem ainda acredita no sentido das coisas. A submissão, ao contrário, é repouso.

O romance é menos uma distopia política que uma radiografia do niilismo disfarçado de tolerância. Não há revolução nem imposição: há simplesmente um colapso moral administrado com boas maneiras. O islamismo em Soumission não conquista a França — apenas preenche o vazio deixado por uma elite que trocou a fé pela ironia e a verdade pelo consenso.

O triunfo dos cansados

A cena política do livro — a vitória eleitoral da Fraternidade Muçulmana — é apenas o espelho de um processo mais profundo: a rendição voluntária de uma sociedade que já não tem vontade. Eu diria (e Gray confirmaria, rindo por dentro) que todas as ideologias modernas são religiões cansadas de si mesmas. O socialismo, o liberalismo, o humanismo secular — todos filhos bastardos do cristianismo, todos prometendo redenção terrena, todos esgotados por excesso de esperança.

A França do romance é o laboratório dessa falência. O país que inventou a razão de Estado, os direitos humanos e o ateísmo elegante termina por entregar sua alma ao poder mais arcaico e simples: o poder de quem ainda acredita em alguma coisa. O islamismo de Houellebecq é menos uma ameaça externa do que uma caricatura da fé abandonada. Ele ocupa o espaço vazio deixado pela decadência espiritual da Europa — uma invasão não por conquista, mas por osmose.

A teologia do comodismo

O mérito perverso de Houellebecq está em perceber que a verdadeira religião do Ocidente é o conforto. A “submissão” de François é apenas uma modalidade espiritual do mesmo instinto que o leva a buscar sexo sem amor, emprego sem vocação e fé sem transcendência. Ele não odeia o cristianismo — apenas não vê utilidade nele.

O islamismo que o acolhe não é uma doutrina, mas uma rotina. Oferece-lhe o que as democracias liberais não conseguem mais: um papel social, um ritual, um senso de continuidade. Em troca, exige apenas o silêncio. Uma barganha razoável.

Há uma ironia trágica nesse arranjo. François acredita ter recuperado a virilidade que o mundo feminista lhe roubara — mas, na verdade, apenas encontrou um modo socialmente aceitável de transformar o tédio em submissão. Sua “conversão” é o ponto máximo de sua mediocridade: um colapso moral apresentado como epifania.

A ilusão da resistência

Toda civilização acredita ser mais lúcida que as anteriores. É um erro de perspectiva: quanto mais uma sociedade se afasta de seus mitos fundadores, mais confunde a apatia com sabedoria. O racionalismo europeu, que começou libertando o homem de Deus, termina libertando-o também de si mesmo.

O homem moderno não resiste à tirania — ele a negocia. François, diante da islamização da França, não se revolta; ele adapta-se. A Sorbonne, outrora templo da razão iluminista, torna-se uma madrassa financiada pelo petróleo árabe. Nenhum protesto, nenhuma indignação. Apenas um murmúrio burocrático, uma transição pacífica para a obediência.

É a revolução passiva de Gramsci em sua forma mais perfeita: uma sociedade que muda radicalmente sem perceber que mudou. Nenhum golpe, nenhum sangue, apenas o desaparecimento suave da liberdade sob a forma de uma nova normalidade.

O colapso da alma

A ironia final é que François, ao aceitar o islamismo, acredita estar ganhando algo — um retorno à ordem, à virilidade, à comunidade. Na verdade, ele está apenas trocando um vazio por outro. O Ocidente pós-cristão e o Oriente teocrático são duas versões de uma mesma negação: ambos desprezam a fragilidade humana.

O primeiro o faz em nome da autonomia racional; o segundo, em nome da obediência divina. Em ambos, a ideia de pessoa — esse milagre moral inventado pelo cristianismo — se dissolve. François, incapaz de amar, e a França, incapaz de crer, terminam idênticos: corpos civilizados sem alma.
A rendição como redenção

Há um tipo de paz que só existe depois da derrota. Soumission é o romance dessa paz. A França ajoelhada não é humilhada — está aliviada. François tampouco é convertido — é poupado do esforço de pensar.

No fundo, Houellebecq escreve sobre o colapso espiritual do Ocidente com o humor gélido de quem já aceitou que nada voltará a ser grande. Sua ironia é a mesma de John Gray: o riso de quem compreende que toda civilização é uma religião moribunda que ainda não percebeu estar morta.

A submissão de François é apenas o epitáfio de uma cultura que, tendo perdido o sentido do sagrado, decidiu venerar o descanso.

E no altar vazio da modernidade, o homem ajoelha-se — não diante de Deus, mas diante da própria fadiga.

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