A modernidade nunca acreditou verdadeiramente em Deus, mas acreditou fervorosamente no desejo. Substituiu a graça pela vontade, o mistério pela escolha, a salvação pelo consumo. No entanto, o homem moderno — armado de liberdade e privação espiritual — descobre-se incapaz de querer. O niilismo do nosso tempo não nasce da falta de crença em valores, mas da saturação do querer. Aprendemos a desejar tudo e, com isso, tornamo-nos incapazes de desejar qualquer coisa.
René Girard, com sua teoria mimética, ainda imaginava que o desejo era um motor universal, um mecanismo antropológico inescapável. Talvez fosse. Mas a civilização tardia — pós-cristã, pós-histórica e pós-humana — deu um passo adiante: encontrou o modo de paralisar o motor. O “aborto do desejo”, como o autor do texto que inspira estas linhas o chama, é o verdadeiro milagre da sociedade liberal. Ele é a vitória final do desencantamento.
O tédio como sacramento
Nenhuma sociedade anterior foi tão eficaz em tornar o tédio um direito humano. A multiplicidade de opções — profissões, identidades, afetos, gêneros — não abriu horizontes: diluiu-os. O “pode ser o que quiser” se converteu em “não há nada que valha a pena querer”. O jovem moderno não sofre por repressão, mas por saturação. Vive rodeado de objetos e possibilidades que não pedem nada dele, e por isso não lhe devolvem nada.
O capitalismo promete o infinito, mas entrega o descartável. O desejo, que outrora buscava o sagrado, agora busca o upgrade. E, quando até a própria transgressão se torna rotina, resta apenas a apatia. O que chamamos “libertação sexual” ou “autonomia pessoal” talvez sejam apenas etapas intermediárias do grande projeto moderno: extinguir o desejo, essa força irracional que faz o homem lembrar que é um animal.
Influenciadores e ascetas digitais
A figura do influenciador é o último sacerdote de uma religião morta. Ele vende a ascese sem transcendência — sacrifícios diários, dietas, rotinas, produtividade — em nome de uma felicidade que nunca chega. O influenciador não acredita no produto que anuncia; acredita no ato de influenciar. É o asceta que não tem Deus, mas ainda jejua.
Girard falou da “ascese para o desejo”: sacrificar o menor pelo maior. Hoje vivemos o contrário — uma ascese do desejo. Sacrificamos qualquer vontade autêntica em nome da performance do querer. Desejamos parecer desejantes. A sociedade da exposição produziu sujeitos que não querem possuir, mas ser vistos possuindo. Não há eros no Instagram — há apenas publicidade.
A indiferença como ideal moral
O dândi do século XIX fingia não sentir; o cidadão digital realmente não sente. Sua frieza não é um estilo, é uma anestesia. O antigo pudor cristão, que escondia o corpo, deu lugar ao pudor pós-moderno, que esconde a vulnerabilidade. Amar, desejar, precisar — tudo isso é vergonhoso, porque implica dependência. A nova virtude é a indiferença. O único pecado é a entrega.
Homens e mulheres competem, hoje, não por amor, mas por autonomia emocional. O corpo é um campo de batalha simbólico, onde a vitória consiste em não precisar do outro. Assim, a emancipação — tanto a masculina quanto a feminina — culmina na esterilidade afetiva. O triunfo do orgulho é a impotência.
O vício em obstáculos
O prazer moderno já não está no objeto, mas no obstáculo. Desejamos o impossível, porque só o impossível ainda promete resistência. Quando tudo é permitido, o único gozo possível é o da autodestruição. A pornografia, a política de identidades, a compulsão por escândalos — tudo isso é a busca frenética por algo que ainda consiga ferir.
Mas esse ferimento já não abre feridas reais. É uma dor simulada, um suplício de consumo rápido. A revolta, como a fé, foi privatizada. O ativista online é o novo devoto: vocifera contra o sistema, mas jamais abandona seu smartphone. O ressentimento é a forma final da esperança.
O eclipse do eros
O que chamamos de “morte do desejo” é, no fundo, a vitória do controle. O eros sempre foi perigoso porque nos colocava fora de nós mesmos. Desejar é aceitar a ferida da alteridade. Por isso, o mundo moderno — obcecado com segurança, autonomia e previsibilidade — precisava eliminá-lo.
As canções pop que celebram o poder e a independência são, na verdade, cânticos fúnebres. São hinos a um sujeito que não precisa de ninguém, e por isso não tem ninguém. O amor foi substituído pelo marketing de si; a paixão, pela curadoria da própria imagem. O corpo, antes um altar de prazer e mistério, tornou-se uma vitrine higienizada.
Epílogo: o último mito
Em Missa Negra, John Gray escreveu que a modernidade é uma religião disfarçada de razão. O mesmo vale para o culto do desejo: ele prometia liberdade, mas conduziu à servidão da indiferença. Quando o homem quis abolir todos os deuses, esqueceu que o próprio desejo era um deles.
Agora, com o altar vazio e o coração anestesiado, resta apenas o murmúrio: “tanto faz”. É o amém pós-moderno, o coro de uma humanidade que venceu todos os interditos e perdeu a capacidade de sentir.
O fim da história não é o paraíso — é o fastio. E, no silêncio após o último grito de emancipação, talvez o único gesto verdadeiramente humano seja aquele que o niilista teme mais: desejar novamente.

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