A Morte Interior e o Delírio da Consciência

O ser humano moderno acredita estar evoluindo, mas apenas aperfeiçoou sua capacidade de morrer por dentro com elegância.

O progresso humano é uma ilusão de escala. Acreditamos que, por termos refinado nossos instrumentos e acelerado nossos meios, também ampliamos nossa consciência. Mas a única coisa que fizemos, na prática, foi sofisticar a negação da morte — não apenas da morte biológica, mas da mais profunda e real: a morte interior.

Hoje, milhões vivem como Raskólnikov depois do crime, mas sem jamais se darem conta do que perderam. Morreram por dentro — e chamam isso de autonomia.

O protagonista de Crime e Castigo, de Dostoiévski, ainda pertence a um tempo em que o sofrimento podia ser um caminho de revelação. Ele acreditou, por um breve e trágico momento, que poderia transcender a moral comum, agir além do bem e do mal, como um Napoleão urbano. Quando mata, não elimina apenas a velha agiota; destrói também o último vestígio de sua própria ligação com o mistério da existência. Torna-se um cadáver funcional. Mas diferente do homem moderno, ele sente o cheiro de sua própria decomposição.

O ser humano contemporâneo, por outro lado, já não sofre com isso. Substituiu a culpa por diagnósticos, o arrependimento por racionalizações, e a dor por distrações. Ele não deseja redenção — deseja apenas não ser incomodado.

Essa é a principal conquista da modernidade: a anestesia da consciência.

Nada ilustra melhor essa condição do que a ideia — amplamente aceita — de que a vida interior é um luxo dispensável. Em vez de um espaço de encontro com o real, ela foi relegada ao patológico. Ficar em silêncio tornou-se estranho. Sentir-se vazio passou a ser tratado como uma disfunção química. E a busca por sentido virou nicho de mercado.

O homem moderno, assim como Raskólnikov, tentou se tornar espírito puro. Mas o espírito que ele encarnou não foi o da razão esclarecida, e sim o da abstração desumanizadora. Ele acredita que pode viver de ideias — e, como resultado, afunda num vazio que nenhuma ideia consegue preencher.

Dostoiévski via no sofrimento uma chance de renascimento. Mas essa visão, por mais potente que seja, pressupõe algo que o nosso tempo já perdeu: a capacidade de sentir culpa, vergonha, espanto. Numa sociedade que transformou até o trauma em capital simbólico, sofrer tornou-se uma performance — e não um caminho.

Mesmo a empatia — palavra-fetiche de nossos dias — foi desidratada de qualquer autenticidade. Ela é celebrada enquanto conceito, mas evitada enquanto experiência real. Afinal, empatizar de verdade com o outro exige parar, escutar, abrir mão do próprio eu — exatamente o que a modernidade nos ensinou a evitar a todo custo.

A técnica não apenas modificou o modo como vivemos. Ela moldou o que consideramos vida. E o fez com tamanha eficácia que o vazio tornou-se norma. Nunca estivemos tão rodeados de estímulos — e nunca fomos tão incapazes de prestar atenção. A mente moderna é um motor de fuga contínua: da dor, da dúvida, do silêncio.

Mas não se trata de um erro, e sim de uma adaptação. Os seres humanos não são racionais, nem buscam a verdade — buscam apenas conforto emocional. O racionalismo moderno é apenas o nome nobre que damos ao desespero domesticado. Inventamos explicações para não ver o que somos. Criamos doutrinas, sistemas, crenças — inclusive a crença na ciência como salvação moral — porque não conseguimos suportar a contingência da existência.

Dostoiévski ainda via uma saída: o amor, a compaixão, o vínculo. Mas mesmo isso parece hoje obsoleto. Sonia, com sua fé silenciosa, talvez seja a personagem mais inverossímil para o século XXI. Ela acredita em redenção. Nós acreditamos em algoritmos.

O que nos resta, então?

Nada. Ou, se quisermos ser generosos, quase nada.

Talvez ainda reste a arte — não como entretenimento, mas como ruína. Os grandes livros não nos salvam, mas nos lembram do que perdemos. São fósseis de uma consciência que já não temos, e que provavelmente não voltará. Ainda assim, em raros momentos, podemos tropeçar em algo que nos pare. Um trecho, uma frase, um sopro de sentido. Isso não nos redime — mas, por alguns instantes, suspende a farsa.

E isso, talvez, seja o máximo que podemos esperar de um mundo como o nosso.


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