Em entrevista para a revista Quatro Cinco Um, o escritor Patrick Chamoiseau relata suas percepções a respeito da própria obra (v. Em busca do insondável). Toda utopia começa como uma esperança e termina como um sistema de crenças. O artista, quando acredita saber o que é a arte, já está a meio caminho de sua servidão. Patrick Chamoiseau reconhece isso com uma honestidade que poucos intelectuais ainda suportam: não sabe o que é a literatura — e talvez nunca venha a sabê-lo. Nesse gesto de ignorância deliberada, há uma lucidez que falta aos que transformaram a arte em moral.
Vivemos em um tempo em que a cultura é convocada a oferecer redenção. Cada livro deve provar sua utilidade social, cada escritor deve confessar sua ideologia. As universidades e os festivais literários se tornaram, em grande parte, versões seculares dos antigos púlpitos. A dúvida estética cedeu lugar à catequese da representatividade. Contra essa tendência, Chamoiseau se comporta como um herético: escreve com a consciência de que o ato de criar é uma forma de desobediência — não à norma social, mas à ilusão de que a linguagem pode ser domesticada.
“Escrever é apoiar a testa contra a rocha dura de uma língua”, ele diz. Essa imagem é mais exata do que parece. A língua, seja a do colonizador ou a do colonizado, é sempre uma estrutura de poder. Toda palavra carrega um império, todo silêncio é uma rebelião. Ao recusar escolher entre o francês e o crioulo, Chamoiseau revela a natureza trágica da arte: ela é o lugar em que o oprimido fala com as palavras do opressor, e ainda assim o desarma. A “língua-fronteira” que ele constrói não é um compromisso, mas uma ferida que permanece aberta — e dessa ferida brota a literatura.
Mas o martírio da linguagem não é apenas político. É também metafísico. Chamoiseau intui que o artista não conhece a beleza, apenas a pressente. A beleza, como a verdade, não é uma propriedade da arte; é um acidente. O escritor trabalha para merecer o acaso de sua visita. A maioria morre sem tê-la encontrado, como o místico que reza a vida inteira a um deus que não responde. A fé do artista é justamente essa: continuar a escrever diante do silêncio.
Ao falar de crioulidade, Chamoiseau não celebra uma harmonia multicultural. Ele descreve uma catástrofe fundadora. A crioulização não é fusão; é fricção. É o encontro de forças que se chocam e se destroem, gerando uma nova forma de vida — instável, híbrida, irredutível. Em um mundo que venera identidades fixas, sua literatura da “relação” é uma lembrança incômoda de que toda cultura nasce do conflito e da mistura. A pureza é apenas a mitologia dos que temem o tempo.
O escritor martinicano percebe o que as utopias do progresso se recusam a admitir: o futuro não é uma promessa de reconciliação, mas uma expansão da complexidade. Quando ele afirma que o mundo novo será feito de “mobilidades, intercâmbios, individualizações”, descreve algo que está além do sonho liberal de um planeta integrado. Ele anuncia uma era em que não haverá mais centro, apenas fluxos — e, portanto, nenhuma forma estável de pertença. Para muitos, isso soa como libertação; para outros, como desamparo. Em ambos os casos, é o fim de um mundo.
John Gray observou que as religiões seculares, de esquerda ou de direita, partilham o mesmo vício: acreditam na redenção histórica. Chamoiseau oferece um antídoto poético a essa ilusão. Sua “literatura da relação” não promete salvação, apenas convivência. Não busca restaurar a unidade perdida, mas aceitar o inacabamento como condição da existência. O artista que escreve em um país dominado descobre, afinal, que toda língua é um império — e que a única forma de liberdade é transformá-la em ruína.
A maioria das utopias modernas pretende fundar novos mundos. Chamoiseau, ao contrário, apenas tenta ouvir os ecos dos que sobreviveram. Sua arte não projeta um paraíso futuro; observa os destroços do presente. É aí que reencontra a beleza — não como resposta, mas como vestígio. O artista, diz ele, caminha sozinho em direção ao enigma. Talvez o que chama de literatura seja apenas isso: o vestígio luminoso deixado por quem se perdeu no caminho certo.
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