A concessão do Nobel de Literatura a László Krasznahorkai confirma algo que há muito se sabe, mas que o nosso tempo insiste em esquecer: que a arte mais duradoura nasce não da esperança, mas da exaustão. Num mundo que se pretende transparente e acelerado, Krasznahorkai escreve como se ainda fosse possível demorar-se no desastre. Seus romances são longos, densos e circulares não por capricho estilístico, mas porque o próprio mundo que descreve não tem saída. O tempo ali não avança; dissolve-se, como o barro das aldeias húngaras que ele insiste em retratar.
A literatura de Krasznahorkai pertence à linhagem dos que compreendem que o progresso é apenas uma narrativa — e uma narrativa particularmente cruel. Kafka, Brodsky, Herta Müller: todos sabiam que a promessa de redenção política é apenas a forma mais elegante da servidão. Krasznahorkai acrescenta a isso um niilismo pastoral: seus personagens vivem entre o entulho das ideologias, mas continuam a acreditar em milagres menores, em rumores de salvação. São cínicos e supersticiosos, ressentidos e crédulos. É essa contradição que os mantém vivos — e que, em última instância, define a própria condição humana.
A baleia embalsamada que atravessa A Melancolia da Resistência poderia muito bem figurar como o emblema do século XX: uma relíquia morta exposta como espetáculo. A decomposição do poder e a persistência do fascínio. Krasznahorkai não descreve a queda de um regime, mas a fascinação que essa queda ainda desperta — como se o colapso fosse, ele próprio, um consolo. O autoritarismo, em sua prosa, é uma força orgânica: retorna sempre, como um rumor do corpo ou uma doença antiga.
Essa percepção — de que o mal político é inseparável da natureza humana — aproxima-o da filosofia sombria de Schopenhauer e da antropologia moral que John Gray descreveu em Straw Dogs: a ideia de que não há progresso ético, apenas variações do mesmo impulso de domínio e autodestruição. Krasznahorkai é, nesse sentido, o cronista mais fiel de uma Europa pós-histórica, em que até o apocalipse se tornou um ritual burocrático.
A segunda fase de sua obra — marcada por viagens à Ásia — não é uma fuga, mas uma confirmação dessa visão. O Oriente, para ele, não é promessa de equilíbrio, e sim outro tipo de ruína: uma ruína espiritual, em que a transcendência já se converteu em curiosidade turística. Em Seiobo estava lá embaixo, o sagrado não redime; apenas sobrevive como técnica. A arte, reduzida à repetição disciplinada, torna-se o último refúgio da verdade — não porque revele algo, mas porque se recusa a significar demais.
Krasznahorkai parece compreender, como poucos, que o verdadeiro gesto de resistência é continuar descrevendo o mundo quando já não há nada a salvar. Sua prosa não oferece saída; oferece apenas o peso do tempo. E, ao fazê-lo, recorda-nos de que o colapso é o estado natural das coisas. A civilização, com suas ilusões de estabilidade, é apenas o intervalo entre dois desastres.
Talvez seja essa a razão profunda de seu Nobel — e também sua ironia: premiar aquele que descreve, com precisão quase litúrgica, a futilidade de todas as premiações. Em Krasznahorkai, o mundo não se corrige. Apenas gira, lentamente, sobre o próprio cansaço.
A arte depois da esperança
Para John Gray, a modernidade é uma religião disfarçada: substituímos Deus pelo mito do progresso e chamamos de “humanismo” a velha crença de que o homem é o centro da criação. Krasznahorkai escreve como quem já viu essa fé apodrecer. Em suas narrativas, o ser humano não é o protagonista da história, mas um acidente que se repete — um erro cósmico que insiste em buscar sentido onde só há entropia.
Seus personagens movem-se entre ruínas materiais e espirituais com a mesma resignação com que uma marionete repete seus gestos. Não acreditam em redenção, mas tampouco conseguem desistir dela. É essa tensão — entre o desejo de sentido e a impossibilidade de alcançá-lo — que dá às suas frases o ritmo hipnótico e claustrofóbico de uma ladainha. Krasznahorkai não escreve para iluminar, mas para mostrar que a luz é, às vezes, apenas outra forma de cegueira.
John Gray diria que essa é a forma mais honesta de arte: uma arte sem esperança. Porque toda esperança, afinal, é uma forma de arrogância — a recusa em aceitar que o mundo é indiferente aos nossos desejos. Krasznahorkai, como Gray, não oferece consolo algum. Ambos descrevem um universo em que a busca por sentido é apenas mais uma narrativa humana — bela, talvez, mas essencialmente fútil.
Quando Krasznahorkai viaja ao Oriente em busca do “autêntico”, o que encontra é a constatação de que nada é mais universal do que a perda. As tradições que o fascinam — o budismo, o taoismo, o xintoísmo — aparecem em sua obra não como alternativas ao desespero ocidental, mas como variantes dele. A serenidade oriental não é, em última instância, diferente da melancolia europeia; é apenas uma forma mais elegante de aceitar o colapso.
No fundo, tanto Gray quanto Krasznahorkai compreendem que a civilização é uma tentativa desesperada de domesticar o caos. A história humana não é uma linha ascendente, mas um ciclo de ilusões renovadas. Cada império, cada sistema político, cada ideal de progresso é apenas um novo disfarce para o mesmo medo: o de que o mundo não nos pertence. Krasznahorkai, ao narrar aldeias decadentes e cidades sem futuro, revela que o colapso não é um evento extraordinário, mas o estado contínuo da realidade.
Seus romances — com suas frases intermináveis e sua respiração irregular — parecem escritos por alguém que tenta resistir à própria extinção. Há, em sua prosa, o eco de uma humanidade que fala sozinha, em voz baixa, já sem saber se alguém ainda escuta. É o mesmo tom que atravessa os ensaios de Gray: o murmúrio de quem reconhece que a lucidez é uma forma de solidão.
No fim, o que há em Krasznahorkai é uma ética da desistência. Não a desistência banal, mas aquela que reconhece que continuar é inútil — e, mesmo assim, continua. Seus personagens, como o próprio autor, vivem entre o absurdo e a persistência. E talvez seja essa, afinal, a única forma de liberdade que resta: a de permanecer lúcido em meio à ruína.
O paradoxo da consagração
O Nobel de Literatura é, por excelência, uma celebração da esperança. Premia-se não apenas uma obra, mas a crença de que a arte ainda pode iluminar o mundo. Krasznahorkai, porém, representa o contrário disso: um autor para quem o mundo não pode — e talvez não deva — ser salvo. Sua consagração é, portanto, uma ironia metafísica. É como se o comitê sueco tivesse concedido o prêmio não ao triunfo da arte, mas à sua ruína.
John Gray observaria, com o seu ceticismo habitual, que o destino de toda civilização é transformar em monumento aquilo que um dia foi subversão. Assim acontece com Krasznahorkai: o escritor que descreveu o fim das utopias é agora erigido como símbolo de uma nova. O prêmio não desmente sua visão trágica do mundo — apenas a confirma. Quando o desespero se torna respeitável, é sinal de que já foi assimilado.
Mas talvez haja uma forma mais profunda de compreender essa contradição. O reconhecimento de Krasznahorkai pode ser visto não como uma celebração da esperança, mas como um tributo ao desamparo. Num tempo em que tudo é reduzido a mensagens de otimismo e autopromoção, sua escrita resiste à linguagem do conforto. Lê-lo é ser lembrado de que a beleza ainda é possível mesmo quando toda redenção falhou — talvez apenas então.
Há uma nobreza discreta em aceitar que a arte não muda o mundo, mas o contempla enquanto ele se desfaz. O próprio Gray, ao escrever sobre o fracasso inevitável das ideias humanas, não o faz com desprezo, mas com uma espécie de ternura fatalista. Krasznahorkai pertence a essa mesma linhagem de espíritos que amam a humanidade justamente porque não esperam nada dela.
No final, o prêmio, como toda glória humana, é apenas uma pequena chama tremulando num vasto deserto de silêncio. Krasznahorkai sabe disso — e é por isso que merece o Nobel. Não por prometer sentido, mas por escrever como quem já compreendeu que o sentido é apenas um outro nome para o medo da morte. Sua literatura é uma oferenda feita ao vazio: uma lembrança de que o colapso não é o contrário da vida, mas sua forma mais honesta.
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