O Clube dos que Não Pertencem

Como a neurodivergência me ensinou que empatia demais pode ser uma forma de implorar por aceitação


Tenho quarenta e seis anos e ainda tropeço em conversas como quem erra o compasso de uma música simples. A vida social, para mim, é uma coreografia cujos passos nunca aprendi. É o tipo de coisa que a neurodivergência cobra com juros: você entende as palavras, mas não o subtexto; reconhece o sorriso, mas não o código que o sustenta.

Durante muito tempo, acreditei que podia compensar essa falha com boa vontade. Tornar-me o tipo de pessoa que ajuda, que se doa, que resolve o que não é seu. Eu comprava as dores dos outros na esperança de receber, em troca, um bilhete de entrada no mundo das relações humanas. Ingenuidade cara. Descobri que empatia demais é, muitas vezes, uma forma de implorar por aceitação.

No convívio profissional, o problema ganha outra escala. As instituições — esses pequenos planetas orbitando o ego humano — funcionam melhor quando alguém acredita que tem poder. Nietzsche dizia que, onde há vida, há vontade de poder. 

Num tempo já distante, trabalhei com uma professora que chefiava a área em que eu lecionava. Ela transformou o trabalho em campo de batalha. Impedia-me de assumir disciplinas sob sua coordenação e, meses depois, as oferecia em cursos de férias. Nada pessoal, claro — apenas política interna, o nome elegante da mesquinhez. Quando deixou a instituição, continuou agindo à distância, como um fantasma administrativo: usava ex-orientandos para influenciar decisões e manter viva sua presença.

Um dia, num gesto de boa intenção, alertei os alunos sobre o risco de perseguições veladas. Fui acusado de “espalhar o terror”. Descobri, da pior forma, que em ambientes hierárquicos quem tenta proteger os outros vira rapidamente o vilão da história. Perguntei-me o que, afinal, eu estava fazendo. Narcisismo? Carência? Alguma necessidade infantil de ser o herói do departamento?

Freud teria se divertido com o caso. Milan Kundera, talvez, dissesse que nada é mais pesado que a compaixão — nem mesmo o próprio sofrimento. No fundo, eu só queria pertencer. E pertencer, como dizia Clarice Lispector, é viver sem explicar. Mas o neurodivergente é aquele que precisa explicar-se o tempo todo: traduzir a própria linguagem, justificar gestos, decifrar expressões. A sociabilidade é um teatro em que o papel de “ator natural” nunca me coube.

Kafka entendeu isso muito antes de qualquer manual de psicologia: seus personagens vivem perdidos em sistemas que não compreendem, tentando decifrar regras que mudam a cada cena. É a mesma sensação que tenho quando tento “me enturmar” — um verbo que, aos quarenta e seis anos, soa cada vez mais absurdo.

Com o tempo, aprendi a reduzir danos. Parei de tentar consertar o mundo e comecei a reparar em mim. Não sou herói de ninguém — mal dou conta do meu próprio enredo. Ainda assim, compreender o jogo social continua sendo tarefa impossível. As relações humanas parecem uma partida de xadrez em que ninguém explica as regras e, pior, todos fingem que você é quem está distraído.

Talvez Clarice tenha razão: compreender é sempre um erro; só o sentir é verdadeiro. E o que sinto hoje é menos culpa e mais serenidade. Não pertenço, é verdade. Mas já não quero tanto. O pertencimento tem um custo alto demais — custa silêncio, disfarce, pequenas traições de si mesmo.

Camus escreveu que, no meio do inverno, descobriu haver em si um verão invencível. Gosto dessa imagem. A neurodivergência, vista de perto, é esse verão fora de hora: uma resistência silenciosa num mundo que exige uniformidade. Talvez eu pertença, afinal — não a um grupo ou instituição, mas a essa zona de fronteira entre o desconforto e a lucidez.

E se é verdade que cada um carrega o inferno que merece, o meu é de convivência. Um inferno educado, cheio de reuniões, sorrisos protocolares e boas intenções. Ainda assim, sobrevivo. Compreendendo o mínimo e sentindo o bastante.


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