
Três reféns ajoelham-se diante de uma câmera. As mãos, amarradas nas costas; as cabeças, cobertas por sacos plásticos pretos que lhes ocultam os rostos. Atrás deles, um grupo de militantes barbudos e sisudos, vestidos com túnicas e turbantes, avança lentamente. Alguns empunham rifles de assalto, outros apenas cruzam os braços, em silêncio.
“Temos uma mensagem para a América”, anuncia o homem que ocupa o centro da cena. Com uma das mãos, apoia-se no ombro da figura ajoelhada à sua frente; com a outra, ergue o dedo indicador para o alto, pontuando o discurso com gestos teatrais.
Para qualquer pessoa acima de certa idade, o enquadramento é imediatamente reconhecível. O olhar fixo, a encenação rígida, o texto ameaçador — tudo remete, de forma perturbadoramente precisa, aos vídeos de Daniel Pearl e James Foley, jornalistas ocidentais decapitados diante das câmeras por grupos extremistas islâmicos.
O título do vídeo — The Lede — sugere tratar-se de uma reportagem ou comentário sobre os acontecimentos do dia. A mise-en-scène reforça a expectativa: mais uma peça de propaganda violenta, mais um registro sombrio das guerras intermináveis no Oriente Médio.
Mas a sequência seguinte toma outro rumo. O homem de pé remove a sacola plástica do rosto do prisioneiro — e o que se vê é um sorriso hollywoodiano. O suposto refém ergue o polegar, radiante. “Bem-vindos ao Afeganistão!”, diz, encarando a câmera com entusiasmo estudado. O que se segue é uma montagem frenética de estrangeiros posando para fotos em vales montanhosos, fazendo flexões sobre canhões de tanques e tirando selfies com soldados locais.
O vídeo, afinal, não era uma ameaça — era um anúncio. Seu criador, Yosaf Aryubi, um afegão-americano de quase trinta anos, o concebeu como peça de propaganda para sua agência de viagens, a Raza Afghanistan, que organiza excursões turísticas pelo país.
Aryubi divide o tempo entre o Afeganistão e a Califórnia. No vídeo, interpreta o papel de um executor em potencial, enquanto o refém que ele “revela” é Jake Youngblood Dobbs, influenciador de viagens norte-americano que, na época, percorria o país em turnê com a Raza. O resultado é uma mistura de sátira e autopromoção — um comercial provocativo que vende tanto o senso de aventura quanto a própria coragem de quem se dispõe a visitar o Afeganistão.
A encenação ganhou atenção além do público-alvo. Uma conta pró-Talibã nas redes sociais, @afghanarabc, compartilhou o vídeo, num gesto que soou como aprovação tácita da façanha de Aryubi. O mesmo perfil já havia divulgado outros conteúdos em inglês, entre eles um trecho do programa de Tucker Carlson, no qual o apresentador elogiava os programas de tratamento de dependência química do Afeganistão e os comparava favoravelmente aos dos Estados Unidos.
Detesto admitir, mas quando vi o vídeo pela primeira vez, há alguns meses, ri. O contraste abrupto entre o tom de ameaça e a virada cômica lhe dava uma ironia sombria e absurda — algo que um Tim Robinson particularmente cínico poderia ter inventado.
Jake Youngblood Dobbs e os outros viajantes até criaram um apelido afetuoso para seus anfitriões: Talibros. A montagem de rock que se segue à falsa execução tem momentos genuinamente engraçados. Em uma das cenas, um grupo de rapazes posa com um fuzil de assalto onde se lê, gravado na lateral, “Propriedade do Governo dos EUA”. “É um souvenir americano”, comenta alguém, entre risadas. “Ah, nem está na trava de segurança agora”, diz o turista branco que segura a arma — antes que todos caiam na gargalhada coletiva e familiar de quem sabe estar fazendo algo estúpido, perigoso e, portanto, irresistivelmente engraçado.
Mas a sequência inicial continuou me assombrando. Nas semanas seguintes, percebi que havia ali algo menos cômico e mais inquietante. As execuções filmadas foram imagens indeléveis das guerras que marcaram minha infância e adolescência — vídeos clandestinos de decapitações que circulavam em sites piratas e que, por curiosidade mórbida, insistíamos em procurar. Lembrei deles com náusea. E suspeito que essa reação — esse mal-estar involuntário — fosse justamente o que buscavam provocar os jovens influenciadores por trás do vídeo.
As referências irreverentes de Aryubi a décadas de violência no Afeganistão se inserem num gênero crescente de conteúdo turístico embalado em ironia: uma mistura de sátira e marketing que, simultaneamente, convida o espectador a duvidar de tudo o que a grande mídia diz sobre o país e a não levar muito a sério o que os próprios criadores afirmam. É, em essência, um guia de viagens para os cínicos — um Frommer’s dos edgelords.
Nos últimos anos, o Afeganistão se tornou cenário de um tipo peculiar de aventura: a dos influenciadores que viajam em busca de ironia. São jovens criadores de conteúdo que, armados de câmeras e autoconfiança, percorrem o país com o discurso de que querem “mostrar a verdade” — ou, pelo menos, uma versão alternativa dela.
Um dos nomes mais conhecidos é o do americano Addison Pierre Maalouf, mais popular na internet como Arab, dono de quase dois milhões de inscritos no YouTube. No inverno passado, ele também visitou o Afeganistão. Em um de seus vídeos, aparece em um mercado feminino, ladeado por companheiros barbudos.
“Estamos aqui, em um mercado de mulheres, comprando roupas femininas, com mulheres ao nosso redor. Isso é loucura. E elas estão conversando! Olha, estão conversando!”, diz, com falsa surpresa, enquanto o amigo ironiza, fingindo duvidar do que vê.
Maalouf continua: “Mas eu lembro de ter lido: ‘Talibã proíbe mulheres de falar’.” Nesse momento, surge na tela a imagem de uma manchete com exatamente essa frase.
A insinuação é clara: a mídia ocidental teria exagerado na representação da repressão feminina para difamar e isolar o regime do Talibã — quando, na verdade, as mulheres afegãs estariam em situação mais livre do que se imagina.
Mas a realidade que Maalouf tenta relativizar é menos flexível. A lei à qual ele se refere determina que “sempre que uma mulher adulta sai de casa por necessidade, deve esconder a voz, o rosto e o corpo”. É a mesma lógica que sustenta a proibição de meninas frequentarem escolas após os doze anos, ou a decisão recente do governo de retirar das universidades todos os livros escritos por mulheres.
É verdade que as leis, no Afeganistão como em qualquer outro lugar, são aplicadas de modo desigual. Assim como em São Paulo é possível atravessar a rua fora da faixa sem ser multado, em Cabul há mulheres que conversam e compram roupas nos mercados sem serem repreendidas por patrulhas do Talibã. Maalouf, portanto, não inventou a cena que filmou — mas a utilizou de modo enviesado, como se fosse prova de que a narrativa internacional é falsa.
O truque é sedutor: o espectador sente que está vendo o que “não querem que ele veja”, e sai do vídeo com a sensação de ser mais esperto do que as massas crédulas que acreditam em tudo o que a imprensa diz.
Há um cinismo difuso operando nesse tipo de conteúdo, uma confluência curiosa entre o turismo de risco e a política de rede. Muitos desses influenciadores de viagens alternativas acompanham — e alimentam — a guinada à direita de seu público, majoritariamente masculino e jovem. O resultado são vídeos que misturam adrenalina, queixas morais e o fascínio pelo “mundo real” fora da bolha ocidental.
O caso de Kurt Caz ilustra bem o fenômeno. Branco, sul-africano e dono de milhões de seguidores em múltiplas plataformas, Caz conquistou fama ao filmar suas andanças por bairros considerados perigosos em países como Venezuela e Quênia. Seu estilo era direto e provocador: desafiava os avisos dos moradores e se aventurava exatamente onde diziam que ele não deveria ir, retratando os países em desenvolvimento por meio de suas zonas de maior vulnerabilidade — um retrato parcial, mas eficaz, de pobreza e violência.
Nos últimos tempos, porém, Caz mudou de foco. Neste verão, apareceu em Frankfurt, na Alemanha, acompanhado de um influenciador britânico de extrema direita que se apresenta como FredCPO — guarda-costas autoproclamado e crítico feroz da imigração. No vídeo, os dois caminham por ruas cheias de usuários de drogas e pessoas sem-teto, lamentando o número de “migrantes ilegais” na cidade. Caz rebatiza o local de “Crackfurt”.
A estética do perigo, antes restrita a favelas latino-americanas ou becos africanos, agora é trazida para o coração da Europa. O subtexto é claro: se nada for feito, as cidades ocidentais seguirão o mesmo caminho dos lugares “arruinados” que ele filmava antes. A mensagem implícita é menos sobre viagem e mais sobre medo.
Há, é claro, um fundo de verdade nesse tipo de vlog em primeira pessoa e em outras “fontes alternativas” de informação. Não é conspiratório afirmar que as narrativas moldadas pela geopolítica estão cheias de estereótipos e de propaganda. Tampouco é mentira que os avisos oficiais de viagem — aqueles comunicados secos emitidos por embaixadas — raramente oferecem um retrato completo dos países que pretendem descrever.
O problema é o que acontece quando essa constatação vira método. Influenciadores como Aryubi, Maalouf e Caz não se interessam pela complexidade: ela não rende cliques. A nuance não funciona bem nas redes sociais. Em vez de contextualizar a longa história de intervenções estrangeiras no Afeganistão, ou os efeitos econômicos do isolamento e do colonialismo, preferem a simplificação que sustenta a indignação e o engajamento.
O resultado é uma torrente de conteúdos que soam tanto como teoria da conspiração quanto como denúncia heroica — e funcionam precisamente por isso. É uma forma eficiente de capitalizar sobre o descrédito crescente no jornalismo tradicional.
Uma pesquisa recente da Gallup mostra que apenas cerca de um quarto das pessoas com menos de cinquenta anos confia na mídia de massa para relatar as notícias de forma “completa, precisa e justa”. A erosão da confiança nos veículos tradicionais vem acompanhada de uma perda de fé na própria ideia de especialização. Nesse vácuo, florescem figuras como Andrew Tate e Nicolas Kenn de Balinthazy (mais conhecido como Sneako), que se apresentam como os únicos dispostos a revelar “como o mundo realmente funciona” — mediante o pagamento de um curso de autoajuda ou a assinatura de um servidor privado no Discord.
O economista político William Davies, no livro Nervous States, descreve esse deslocamento como o colapso de uma visão compartilhada da realidade. A confiança nos especialistas, escreve ele, fornece à sociedade “uma versão do mundo sobre a qual todos podemos concordar”. Quando essa confiança se desfaz, o que toma seu lugar é a intuição coletiva — uma leitura emocional e fragmentária do presente.
“À medida que a visão objetiva do mundo recua”, escreve Davies, “ela é substituída pela sensação de para onde as coisas estão indo agora. Esse estado nervoso oferece mais estímulo e sensibilidade, mas, por isso mesmo, é inquietante. Pode gerar conflito e agitação do nada. E a pergunta que se impõe é: quem está tentando despertar esses sentimentos — e com que finalidade?”
Em vez de buscar a verdade, esses influenciadores parecem empenhados em dissolvê-la. Seu objetivo não é esclarecer, mas embaralhar — deixar o público perdido, cético, incapaz de distinguir o que é fato e o que é encenação. Essa névoa de incerteza rende cliques, visualizações e, sobretudo, dinheiro.
Ao minar as narrativas oficiais, eles se posicionam como a única fonte confiável de informação — paradoxalmente, convertendo o descrédito na mídia em capital simbólico e financeiro. O público, cada vez mais desconfiado, acaba preso em um ciclo de notícias baseado em rumores, ironia e especulação.
Nas franjas do algoritmo, operar no limite tornou-se estratégia de marketing. É por isso que nomes como os Nelk Boys ou Jake Paul — antes conhecidos por pegadinhas juvenis no YouTube — migraram para um conteúdo cada vez mais político e provocador. Títulos como: 48 horas vivendo na favela dos trilhos de trem da Indonésia ou Fiquei cego experimentando o mel alucinógeno do Nepal seguem a mesma fórmula: fetichizar o perigo e a pobreza para garantir atenção. Não por acaso, o canadense Nolan Saumure, que atende pelo nome artístico de Seal, ostenta na capa de seu canal o slogan “Junte-se ao Circo Itinerante”. A tentação, sempre implícita, é a mesma: venha ver se esse idiota morre.
William Davies volta a ser certeiro: “Quando palavras e imagens se tornam meras ferramentas para mobilizar e engajar, deixa de importar se são reflexos válidos da realidade.”
Sob esse prisma, a execução simulada de Yosaf Aryubi adquire um estranho frescor. Não há disfarce de seriedade, nem promessas de verdade. Tudo é abertamente uma encenação. Ele sabe — e nós também — que é apenas uma grande piada.
Postar um comentário