A literatura — se ainda a palavra conserva algum sentido — era, em outros tempos, o espaço onde a linguagem se tornava uma forma de consciência. Escrever não era apenas comunicar: era experimentar-se no limite do que podia ser dito. Mas o mundo moderno, sempre ansioso por redenções seculares, converteu a linguagem num instrumento de salvação política. O escritor cedeu lugar ao militante, e a literatura, à catequese.
Não foi a censura que matou a literatura brasileira. Foi a crença. A crença de que o mundo pode ser moralmente corrigido pela retórica. A crença de que a linguagem, purificada de toda ambiguidade, serviria como veículo para um novo homem — um homem sem preconceitos, sem contradições, sem pecado. O Homo redimido pelo discurso. O Homo corretíssimo.
Toda utopia começa com uma promessa de pureza. A modernidade brasileira, com sua ânsia de se alinhar às modas ideológicas globais, apenas atualizou o velho delírio iluminista em escala tropical. Substituímos Deus pela “consciência social”, a alma pela “identidade” e o pecado pela “opressão estrutural”. O resultado é o mesmo: culpa universal, redenção impossível, inquisidores de plantão.
A linguagem, antes veículo de comunhão — no sentido que Allen Tate dava ao termo — tornou-se uma ferramenta de profilaxia moral. As palavras foram desinfetadas, tornadas seguras para consumo público. Em lugar do estilo, temos o protocolo. Em vez do ritmo interior do pensamento, temos o catecismo da opinião. O escritor moderno não escreve: higieniza frases.
A consequência é previsível. Uma cultura que vigia suas palavras deixa de pensar. E uma literatura que não pensa deixa de existir. A ausência de grandes escritores não é um acidente, mas o sintoma de uma civilização que já não tolera o risco da sinceridade. A literatura não morreu por falta de leitores, mas por excesso de virtude.
Em Missa Negra, John Gray recorda que as ideologias modernas são teologias sem transcendência — religiões que ainda acreditam na redenção, mas dispensam Deus. O progressismo cultural que domina o cenário brasileiro é uma dessas teologias, e sua liturgia é a linguagem. Cada termo proibido é um pecado, cada adjetivo suspeito, uma heresia. A literatura, se quer sobreviver, deve penitenciar-se em público, confessar sua culpa original, pedir desculpas à História.
Mas a História não perdoa. Apenas consome. A cada nova geração, o escritor brasileiro é compelido a se purificar um pouco mais, a calibrar sua consciência para as sensibilidades do momento. O resultado é uma prosa sem espessura, sem ironia, sem verdade. O escritor torna-se um funcionário da moral — e o leitor, um fiscal.
Escrever sob tais condições é como respirar num quarto sem oxigênio. A linguagem, privada de tensão e ambiguidade, morre de asfixia. A literatura, reduzida a instrumento pedagógico, já não é arte: é política de recursos humanos.
A destruição da literatura é um crime invisível, porque suas vítimas não sangram. Não há cadáveres, apenas o silêncio. As gerações formadas sob essa nova ordem moral não saberão o que perderam, porque já nasceram órfãs da experiência interior. Não saberão distinguir comunicação de comunhão — nem compreenderão por que isso importava.
A alma humana, dizia Pascal, tem horror ao vazio. Quando a arte recua, o moralismo avança para preenchê-lo. O moralista é o artista fracassado que descobriu o poder do ressentimento. Ele não cria: ele corrige. E a correção, em sua forma mais elevada, é o extermínio simbólico de tudo o que é ambíguo, imperfeito, vivo.
Por isso, a extinção da literatura não é um colapso cultural, mas um triunfo político. A palavra autêntica — aquela que exprime a verdade da experiência humana — é perigosa. Ela desestabiliza crenças, ridiculariza certezas, afronta hierarquias. É mais subversiva do que qualquer panfleto. E justamente por isso, foi banida.
Há, é claro, uns poucos sobreviventes — poetas que ainda escrevem como quem escava uma mina abandonada, na esperança de encontrar vestígios de humanidade entre os escombros da ideologia. São poucos, anacrônicos, quase invisíveis. Mas sua persistência é a última forma de resistência espiritual num país que se tornou incapaz de distinguir arte de anúncio governamental.
O Brasil não carece de talento. Carece de mundo interior. E sem mundo interior não há literatura, apenas propaganda de sentimentos.
Talvez seja essa a ironia final: a civilização que mais se orgulha de sua consciência moral é justamente a que menos compreende o mal — e, por isso, a que menos compreende o homem.
A literatura, se algum dia voltar, não virá como salvação, mas como ruína. E talvez seja preciso que tudo se destrua — para que uma palavra volte a significar alguma coisa.
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