A imaginação sempre foi o refúgio mais íntimo da espécie humana. No ato de criar — seja uma história, um poema, um pensamento — o homem encontra um raro intervalo de liberdade entre o mundo que o oprime e o eu que o sustenta. No entanto, estamos vivendo o momento em que até esse intervalo é colonizado. As ferramentas de inteligência artificial além de prometerem acelerar a escrita, buscam purificá-la daquilo que a torna humana: a incerteza, a hesitação, o erro.
Não é a máquina que ameaça a literatura — é a ideologia que a alimenta. A idolatria contemporânea pela eficiência e pela produtividade converteu o pensamento em uma operação estatística. A imaginação, reduzida a dado processável, tornou-se um recurso de extração. A criação, que antes emergia da lentidão, da solidão e da dúvida, passa agora a ser mensurada em tokens por segundo. Escrever, hoje, é competir com um algoritmo. E o escritor que tenta “colaborar” com a máquina apenas internaliza sua lógica — a lógica do desempenho.
O fascínio pela inteligência artificial não nasce do desejo de compreender, mas do medo de ser deixado para trás. Por trás da promessa de criatividade aumentada, oculta-se a mais antiga das servidões: a busca por validação. O criador contemporâneo já não confia em seu próprio juízo; ele busca a certificação algorítmica de que aquilo que faz “funciona”. A literatura, nesse contexto, deixa de ser uma forma de expressão e se torna um teste de aderência a padrões estatísticos de relevância.
Os algoritmos não compreendem o que produzem; apenas espelham a regularidade das repetições humanas. Sua linguagem é um espelho fosco onde o escritor, ao procurar a si mesmo, descobre apenas o reflexo de uma multidão sem rosto. A IA não é um instrumento da criação, mas um sintoma daquilo que a sociedade fez com o ato de criar: transformá-lo em um processo industrial de certificação simbólica. A literatura passa a ser medida não por sua verdade, mas por sua eficiência comunicativa — e nisso a máquina é insuperável.
O estilo, essa expressão instável e vital da experiência humana, não pode ser imitado porque não é apenas técnica. Ele nasce da tensão entre o mundo e a consciência, da fricção entre o desejo de dizer e o fracasso inevitável da linguagem. O estilo é o traço de uma alma que resiste à abstração. A máquina, porém, só reconhece o que é recorrente. Ao reproduzir o estilo, ela mata o movimento que o fazia vivo. Sua perfeição é um cadáver polido.
A sociedade que se prostra diante das máquinas não o faz por ingenuidade, mas por conveniência. O culto à eficiência oferece um alívio moral: quem produz rapidamente sente-se virtuoso. A pressa é a nova forma de pureza. Nesse mundo, o escritor hesitante — aquele que pensa devagar, que duvida, que reescreve uma frase dez vezes — é um anacronismo, um obstáculo à economia da velocidade. O capitalismo de dados não tem lugar para o intervalo contemplativo; ele o identifica como falha.
Talvez por isso a literatura que sobreviverá não seja a que imita o humano, mas a que se refugia naquilo que nenhuma máquina pode acessar: a interioridade. Essa literatura não será um produto de luxo, mas um exercício de desobediência. Será lenta, imperfeita, frágil — e, justamente por isso, viva. Em um tempo em que tudo é quantificado, apenas o que resiste à medição conserva valor.
A inteligência artificial é apenas o espelho de uma civilização que desistiu de pensar. A tecnologia não destrói a imaginação; ela a revela em sua decadência. O escritor que entrega seu ofício à máquina não perde apenas o controle da linguagem — perde o direito de se surpreender com o que cria. O que morre, nesse gesto, não é a literatura, mas a experiência de ser humano o bastante para criá-la.
A tarefa agora é simples e terrível: aprender a estar sozinho de novo, longe das máquinas que fingem pensar por nós. O silêncio, mais do que nunca, é uma forma de insubordinação. A resistência à automatização da arte começa com o gesto de recusar o cálculo, de aceitar o tempo da dúvida, de escrever uma linha que não serve a nada — exceto ao mistério de ser.
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