A ilusão da redenção: sobre Coração sem medo e o limite humano do progresso


Toda literatura que se propõe política carrega uma contradição de origem: quer transformar o mundo, mas depende da linguagem — essa ferramenta de uma espécie incapaz de transformar a si mesma.

Coração sem medo, de Itamar Vieira Junior, não tenta escapar dessa contradição; antes, a assume como princípio. Sua força nasce justamente do reconhecimento de que o sofrimento brasileiro — o da pobreza, da violência policial, da desigualdade racial — não é uma falha passageira da história, mas o seu modo regular de operar.

A protagonista, Rita Preta, não atravessa o infortúnio em busca de purificação moral. Sua existência não sugere transcendência, apenas continuidade. No universo de Vieira Junior, continuar é o gesto ético fundamental. E continuar, aqui, significa recusar o consolo. Essa recusa é o que aproxima o romance de uma visão trágica do humano — aquela que John Gray reconhece na tradição que vai de Heráclito a Schopenhauer: o reconhecimento de que a dor não é um obstáculo ao progresso, mas a substância da vida consciente.

Em Coração sem medo, a dor não ensina; repete-se. O desaparecimento de Cid, o filho primogênito, não é o início de um drama singular, mas o prolongamento de uma história coletiva. Cada corpo negro que some é uma reencenação do mesmo ritual estatal de extermínio. Cada mãe enlutada é a memória viva da falência de um Estado que insiste em se proclamar republicano. Vieira Junior, como Gray, parece compreender que as instituições humanas não evoluem: apenas mudam de forma para preservar a mesma estrutura de dominação.

Ao contrário das narrativas redentoras que povoam o imaginário progressista — aquelas que imaginam o sofrimento como etapa de um processo moral ascendente —, Coração sem medo rejeita a linguagem da esperança. Rita Preta não deseja reformar o mundo, tampouco se deixa convencer pela promessa de que a justiça virá. Sua luta é mais elementar: manter a lucidez diante do infortúnio.

Gray escreveu que o humanismo secular é apenas “cristianismo sem teologia”: mantém a fé na bondade e na perfectibilidade do homem, mesmo tendo perdido o deus que garantia tal fé. O romance de Vieira Junior parece escrever contra esse mesmo dogma. Ele sugere que a crença no progresso moral da humanidade é uma das últimas formas de superstição. Por trás do discurso civilizatório, o que persiste é a barbárie racionalizada — a mesma que transforma a violência policial em rotina e a desigualdade em estatística.

Essa percepção não conduz ao niilismo, mas à sobriedade. O mundo, nos lembra Gray, não precisa de sentido para existir. O sofrimento não exige justificação. A sabedoria trágica está em aceitar a imperfeição como condição inescapável. É exatamente o que Rita Preta encarna: ela sabe que não há justiça possível para o que perdeu, e ainda assim segue. Sua dignidade nasce dessa lucidez amarga.

O espaço do sonho e da imaginação, que se amplia no decorrer da narrativa, não contradiz essa visão; ele a reforça. Em Coração sem medo, sonhar não é esperar um outro mundo — é preservar um fragmento de humanidade dentro deste. O sonho é uma forma de consciência, não de ilusão. Ele é, para Rita Preta, o que a filosofia foi para os céticos antigos: um abrigo contra o desespero.

Quando a protagonista declara que “a ditadura nunca acabou”, ela não está apenas denunciando o autoritarismo brasileiro: está descrevendo o próprio ritmo da história humana. A violência muda de nome, mas nunca desaparece. As democracias modernas, com suas polícias, prisões e desigualdades, são apenas versões mais sofisticadas do mesmo regime de força. A civilização é o modo como disfarçamos a guerra permanente da espécie contra si mesma. Vieira Junior mostra essa guerra com a precisão de um cronista que não acredita em milagres.

No fundo, Coração sem medo é uma crítica ao mito central da modernidade — o mito de que o homem pode ser salvo por suas próprias invenções. Nem o Estado, nem a política, nem a cultura redimem o sofrimento. O humanismo, como religião secular, fracassa porque ainda supõe que a história tem direção e que o bem pode prevalecer com o tempo. O romance de Vieira Junior destrói essa narrativa: o tempo, aqui, é circular, e o mal, permanente.

Contudo, é justamente nesse reconhecimento que surge uma ética possível. Se o progresso é uma ilusão, a compaixão não o é. Se a história não melhora, o gesto singular de cuidado — o olhar da mãe, o sonho persistente, a palavra escrita — ainda preserva um sentido. A obra de Vieira Junior confirma, assim, a intuição mais sombria e, paradoxalmente, mais humana de John Gray:
“A tarefa não é aperfeiçoar o mundo, mas aprender a viver dentro dele.”
Rita Preta aprende — não com fé, mas com lucidez. Sua coragem é sem esperança. E talvez seja essa a única coragem que reste.


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