A Morte das Ideias e o Mito da Nação: Gilberto Freyre entre o Silêncio e a Usurpação

Um ensaio sobre como sociedades modernas transformam intelectuais em adereços ideológicos, congelam obras vivas em narrativas convenientes e utilizam a memória de Gilberto Freyre para legitimar suas próprias ilusões — políticas, acadêmicas e nacionais


Na maior parte das nações modernas, o destino de um grande pensador não é ser compreendido, mas ser utilizado. Primeiro ele ajuda a romper um horizonte intelectual estreito; depois é mumificado, recortado, convertido em logotipo de alguma narrativa nacional. Em vida, incomoda. Morto, torna-se decoração. Gilberto Freyre é um caso exemplar — não tanto pela originalidade do seu pensamento, mas pelo uso que dele fez uma sociedade obcecada em transformar qualquer inteligência em instrumento de autoafirmação.

O relato consagrado — fixado por Antônio Cândido, em tom polido e aparentemente neutro — parece, à primeira vista, um capítulo edificante da história das ideias no Brasil. Três livros, três autores, uma “redescoberta do Brasil” na década de 30: Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Hollanda, Gilberto Freyre. A narrativa é simples: métodos novos, importados dos grandes centros, substituem os resquícios de positivismo e evolucionismo oitocentistas; as ciências sociais brasileiras, enfim, alcançam a maioridade. Tudo isso desenhado como se a história do pensamento fosse um percurso de depurações sucessivas, indo do acanhado ao complexo, do atraso à maturidade — a velha fantasia do progresso, reencarnada, agora, em forma acadêmica.

John Gray lembraria que esse tipo de arranjo narrativo não é uma descrição da realidade, mas um mito de origem. Não há “chegada à maturidade” na história das ideias; há apenas substituição periódica de ilusões. O que se apresenta como “superação” metodológica costuma ser apenas mudança de moda, alinhamento a novos centros de prestígio, reacomodação de ambições locais a linguagens universalistas. No Brasil dos anos 30, o marxismo reformado de Caio Prado, a escola histórica francesa de Sérgio Buarque, a antropologia boasiana de Freyre não foram a irrupção súbita da Razão, mas a adaptação oportunista de uma elite periférica aos códigos legítimos do pensamento mundial.

O que tornava essa adaptação especialmente eficaz, no entanto, era a coincidência com um projeto político autoritário que precisava de uma alma. O regime Vargas, com sua mistura de nacionalismo, autoritarismo e cálculo pragmático, não era guiado por qualquer compromisso com a verdade. Mas tinha um talento raro: saber que ideias, mitos e símbolos valem mais do que decretos. Por isso absorveu, com avidez, as criações intelectuais da época. O governo não se limitou a tolerar a cultura; apropriou-se dela, fez dela um espelho lisonjeiro.

Vargas percebeu rapidamente o poder de certas fórmulas. De Sérgio Buarque, tomou a “cordialidade” do brasileiro como traço nacional; de Caio Prado, a leitura marxista filtrada pela necessidade da industrialização; de Freyre, o anti-racismo mestiço, convertido em mito de origem da nação. Ao mesmo tempo em que investia em Villa-Lobos como símbolo de elevação musical e promovia o samba a emblema oficial da “musicalidade popular”, o regime costurava um retrato de país em que tudo parecia convergir para uma única moral: o Brasil era singular, conciliador, mestiço, naturalmente vocacionado para um destino histórico benigno.

Para Gray, isso não seria sinal de vitalidade cultural, mas de uma característica mais sombria: a capacidade das sociedades modernas de transformar diagnósticos complexos em slogans tranquilizadores. A cordialidade, em Sérgio Buarque, era conceito ambíguo, quase trágico; no discurso nacionalista, virou autoelogio sentimental. O anti-racismo freyreano, nascido de uma crítica aos delírios hierárquicos do racismo científico, converteu-se numa espécie de indulgência automática: se somos mestiços, estamos absolvidos de qualquer culpa. O marxismo de Caio Prado, concebido como crítica estrutural, terminava servindo como justificativa para a industrialização protecionista. Não era a verdade que triunfava, mas a utilidade.

Quando regimes autoritários incorporam ideias sofisticadas, não é porque tenham se elevado intelectualmente, mas porque descobriram que toda teoria pode ser convertida em ornamento ideológico. A modernidade não aboliu o uso instrumental do pensamento; apenas substituiu teologias por sistemas seculares — marxismo, nacional-desenvolvimentismo, psicologias coletivas, antropologias da identidade. Cada uma promete não apenas explicar o mundo, mas fornecer um roteiro para transformá-lo. Em troca, pede uma lealdade que pouco tem a ver com a busca de verdade.

O episódio posterior — a apropriação acadêmica de Freyre pela USP, a partir de Antônio Cândido e de uma geração de marxistas universitários — é apenas a continuação desse processo por outros meios. A homenagem polida, que o consagra como um dos “precursores” de uma fase gloriosa do pensamento nacional, tem o efeito de colocar o autor numa prateleira bem definida: pioneiro, datado, superado dialeticamente. Casa-Grande & Senzala é elevado a marco inaugural, mas ao preço de ser reduzido a um simples degrau na escada que leva ao “reino uspiano das luzes”. A glória do homenageado torna-se, afinal, o prólogo da glória do homenageante.

Para Gray, nada mais previsível. Em qualquer tradição acadêmica consolidada, os mortos são reorganizados de modo a legitimar o poder dos vivos. A Aufhebung marxista, aplicada a Freyre por Carlos Guilherme Mota, obedece a essa lógica: reconhece virtudes “progressistas” no autor, mas as trata como sementes destinadas a florescer somente numa geração posterior — aquela, naturalmente, à qual o intérprete pertence. O que não cabe nesse roteiro é descartado como “reacionário”, “sobrevivência”, “esclerose ideológica”.

Vale notar que o critério de juízo não é a coerência interna da obra, mas a posição política do autor em relação ao regime da hora. Darcy Ribeiro, que defendia basicamente a mesma visão de miscigenação que Freyre, foi poupado de condenações equivalentes porque se alinhou ao campo considerado “certo”. A mesma teoria, quando utilizada por adversários, torna-se suspeita. O que muda não é o conteúdo intelectual, mas a distribuição das lealdades. A ciência é julgada não por suas razões, mas pelo lado em que os cientistas se colocam no mapa afetivo da guerra política.

Essa lógica friend/enemy, descrita por Carl Schmitt e tão rejeitada em público quanto praticada em privado, é precisamente o terreno em que floresce a figura que Freyre batizou de “intelectuário”: o híbrido de intelectual e funcionário — do partido, do Estado, da seita. O intelectuário não busca compreender; busca administrar significados em favor de um grupo. Seu horizonte não é a verdade, mas a utilidade estratégica. Ele pode citar Boas, Weber ou Marx, mas apenas na medida em que esses nomes reforçam a identidade da tribo.

A criação desse conceito é uma das ironias mais finas na trajetória de Freyre. Na tentativa de entender por que homens com ótima formação científica pervertiam a linguagem da ciência em retórica sectária, ele acabou tocando num traço estrutural da vida intelectual moderna. Em todas as democracias de massa, a figura do intelectuário tornou-se central: editorialistas, professores militantes, especialistas que se movem com a mesma desenvoltura em congressos acadêmicos e palanques. Eles não são aberrações; são adaptações bem-sucedidas a um ambiente em que prestígio simbólico depende de alinhamento moral.

Gray diria que isso não é um desvio acidental, mas o destino normal das ideias num mundo em que a política substituiu a religião como fonte de sentido. Quando as crenças religiosas perdem sua centralidade, o vazio não é preenchido por uma “razão neutra”, mas por ideologias secularizadas que exigem o mesmo tipo de devoção e produzem o mesmo tipo de heresia. O marxismo universitário, o nacional-progressismo varguista, o anti-racismo celebratório, o populismo cultural são apenas variações locais dessa tendência geral: transformar teorias em símbolos de fé, e divergências em indícios de culpa.

Nesse contexto, não surpreende que a obra de Freyre tenha sido estreitada à medida da necessidade nacional. Casa-Grande & Senzala, em 1933, bastou para virar de cabeça para baixo um ambiente marcado pelo pessimismo racista e pelo evolucionismo vulgar. Sua defesa da miscigenação e sua crítica às hierarquias raciais ganharam status de revelação libertadora. O livro se tornou marco da autoconsciência nacional — e, ao mesmo tempo, sua própria caricatura. Tudo o que veio depois passou a ser lido como apêndice, confirmação, extensão ilustrativa de uma tese inicial.

A operação é típica: quando uma sociedade encontra num livro uma imagem lisonjeira de si mesma, tende a congelá-lo naquele ponto. O que não reforça o mito é desacreditado, ignorado, esquecido. Uma carreira intelectual de meio século, com avanços metodológicos, ambições de reformular o conjunto das ciências humanas a partir de pressupostos ecológicos e planetários, é reduzida a um “primeiro capítulo brilhante”. É como se alguém respondesse à pergunta “o que é um carvalho?” apontando para uma bolota e afirmando que ali já está tudo. Tecnicamente, está; mas, na prática, é uma maneira de evitar lidar com a grandeza real da árvore.

A recusa em reconhecer essa grandeza não é específica do Brasil, embora assuma ali formas particularmente caricatas. A anedota de Ary Barroso, reduzindo Villa-Lobos a “grande jogador de bilhar”, condensa algo que Gray veria como sintoma de uma cultura que tem medo das alturas. Em vez de assumir que certos criadores estão numa escala comparável à dos grandes nomes universais, a reação dominante é nivelar tudo pela categoria amorfa de “gênio nacional”, onde cabem lado a lado um sociólogo monumental, um sambista talentoso e um jogador de futebol. Não se trata de justiça democrática, mas de alergia à desigualdade real de talentos.

Esse medo das alturas não é apenas ressentimento; é também mecanismo de autopreservação. Reconhecer que alguém como Freyre — com seu alcance eco-histórico, sua antecipação de métodos interdisciplinares, sua recusa de hierarquias deterministas — possa estar mais próximo de Weber do que de muitos teóricos europeus celebrados implicaria admitir que a periferia do sistema mundial produziu algo que não cabe confortavelmente nos esquemas de dependência e atraso. Isso é perigoso demais para uma elite que se acostumou a explicar tudo por meio da sua própria impotência histórica.

Um pensamento realmente universal é sempre inassimilável às identidades prontas. A obra madura de Freyre — com sua ênfase na unidade biológica da espécie humana, na unidade ecológica do planeta, na multiplicidade dos fatores que determinam a vida social — ultrapassa completamente os jogos de soma zero da política local. Nada lhe é indiferente: alimentação, climas, arquitetura, gestos, doenças, técnicas, afetos. Não se trata de “reduzir” o humano à biologia ou à economia, mas de tomar a sério a ideia de que o homem é um animal que produz cultura num cenário físico e histórico concreto. Em vez de hierarquizar causas, Freyre prefere articular perspectivas. É um projeto de ciência humana que resiste à tentação de transformar qualquer chave parcial em explicação total.

Esse tipo de ambição raramente é recompensado. É mais fácil canonizar um autor por um mérito isolado — seu estilo, sua coragem política, sua utilidade imediata — do que confrontar a extensão desconfortável de sua visão. Por isso a “homenagem cruel” é tão frequente: exaltar um traço parcial para ocultar a grandeza do todo. No caso de Freyre, celebra-se o pioneiro da miscigenação, o estilista brilhante de Casa-Grande & Senzala, o cronista da formação patriarcal — e deixa-se de lado o teórico que, silenciosamente, antecipou boa parte da sensibilidade ecológica e interdisciplinar que o século XX viria a valorizar sob outros nomes e bandeiras.

Há um ponto, porém, em que o olhar de John Gray se encontraria com o de quem ainda leva a sério a obra freyreana: a recusa em transformar esse quadro numa história de “traição” e degenerescência. Não há nenhum paraíso perdido a ser restaurado. Nem a era Vargas, com sua autoconfiança patriótica, nem a universidade marxista, com sua fé iluminista, representaram momentos de “sinceridade intelectual” traídos depois pela ideologia. Todas as fases foram ideológicas desde o início. Todas traduziram, à sua maneira, o mesmo impulso humano: usar ideias para dar sentido a uma existência contingente, frágil, sem fundamento.

Se há algo de singular em Freyre, não é que tenha escapado a esse destino, mas que tenha tentado, por vezes, olhá-lo de fora. Seu conceito de “intelectuário” é, nesse sentido, uma forma discreta de desconfiança permanente: um lembrete de que o próprio cientista social pode tornar-se funcionário de um mito, mesmo quando acredita estar desmontando mitos alheios. Que isso tenha se voltado contra ele, reduzindo-o a personagem de um roteiro alheio, não é uma injustiça excepcional. É a regra.

No fim, a grandeza de Freyre — como a de qualquer pensador que mereça esse nome — não está garantida pela gratidão de sua sociedade. Está antes na persistência incômoda de suas perguntas, que não se deixam encerrar em nenhuma liturgia patriótica, nem em nenhum catecismo revolucionário. Visto de uma distância que não reconhece fronteiras entre centro e periferia, esquerda e direita, progresso e atraso, ele aparece menos como um “clássico nacional” e mais como uma dessas figuras raras que ainda ousaram tratar o humano inteiro — no corpo, na terra, na história — sem reduzir nada ao conforto de uma explicação única.

Talvez seja isso que uma ciência humana digna do nome ainda pode oferecer: não um caminho de salvação, nem um manual de modernização, mas uma forma de atenção ao que somos, sem promessas. Em países como o Brasil, essa atenção costuma ser respondida com silêncio, caricatura ou uso instrumental. No entanto, a obra permanece, à espera de leitores que não procurem nela munição para suas guerras, mas ocasião de enxergar, por um instante, o homem e a terra sem mito de progresso e sem mito de ruína — apenas na sua difícil e, por isso mesmo, insuportável realidade.

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