A sucessão de desastres recentes — tornados devastando pequenas cidades brasileiras, tufões ceifando centenas de vidas nas Filipinas, populações inteiras desalojadas em poucas horas — não constitui um desvio da normalidade. Representa, ao contrário, a revelação tardia de uma verdade que a humanidade preferiu ocultar: a de que o clima do planeta nunca foi um objeto estável sob controle humano. A crise climática apenas expõe, de forma cada vez mais brutal, os limites invariáveis da espécie que acreditou poder negociar com a natureza como se esta fosse um parceiro racional.
A ficção científica, que por décadas serviu para projetar esperanças tecnológicas ou temores apocalípticos, tornou-se agora uma categoria porosa, quase redundante. Quando uma onda de calor pode matar milhões em um único país; quando cidades costeiras presumivelmente seguras se veem condenadas ao alagamento perpétuo; quando até a atmosfera se converte em ameaça, a imaginação literária deixa de ser fuga e passa a ser espelho. Não por acaso, escritores como Kim Stanley Robinson observam que a realidade parece ter absorvido integralmente a lógica da ficção especulativa. O extraordinário se tornou ordinário.
Contudo, a insistência em classificar tais obras como “ficção climática” revela outra das ilusões persistentes do nosso tempo: a crença de que é possível delimitar a crise ambiental a um nicho temático, como se ela fosse apenas mais um tópico entre outros. Na verdade, a erosão ecológica é o pano de fundo incontornável de toda narrativa humana contemporânea. Escrever sobre pessoas no século XXI — seus deslocamentos, seus conflitos, suas esperanças — é necessariamente escrever sobre um mundo em processo de transformação forçada, que reage a séculos de extração e desperdício.
Diante desse quadro, ressurgem as esperanças típicas do humanismo político: organismos supranacionais, conferências globais, compromissos multilaterais, todos sustentados pelo pressuposto de que os Estados podem superar seus próprios interesses e agir como se fossem guardiões de um futuro comum. Na ficção, pode-se conceber um “Ministério para o Futuro” — uma instância que represente as gerações por vir — mas no mundo real tal iniciativa esbarra na realidade mais banal das relações internacionais: a soberania não se dissolve pela força de um ideal moral.
As COPs oferecem um exemplo emblemático desse dilema. Elas funcionam como rituais contemporâneos de esperança e frustração: promessas grandiosas são feitas e, quase sempre, quebradas; planos são anunciados com solenidade para em seguida serem esquecidos; metas são estabelecidas para serem adiadas indefinidamente. Chamar tais compromissos de “casamento entre Estados” não é metáfora exagerada. São pactos selados em público e ignorados em privado, movidos mais por pressão simbólica do que por convicção. No fundo, exige-se dos países um tipo de altruísmo que nunca fez parte de sua lógica de funcionamento.
O erro do pensamento progressista — e aqui emerge o ponto central — é imaginar que a humanidade se moverá de modo coordenado e racional diante do perigo. A história desmente essa esperança. Civilizações frequentemente caminharam para o colapso acreditando possuir tempo, recursos ou engenhosidade suficientes para evitá-lo. Hoje, não é diferente. Os eventos extremos se multiplicam, mas a nossa resposta permanece fragmentada, hesitante, profundamente condicionada por rivalidades geopolíticas e pela fé deslocada de que “a tecnologia salvará”.
Ainda assim, não vivemos num romance apocalíptico. A espécie humana raramente desaparece com seus desastres — adapta-se, sobrevive, reorganiza-se. Mas essa resiliência não implica redenção. Implica apenas continuidade. O mundo que emerge da crise climática não será o paraíso sustentável prometido por décadas de retórica ambiental. Será um mundo mais desigual, mais tenso, mais vulnerável — e ainda assim inevitavelmente humano, com todas as suas contradições intactas.
A literatura que aborda esse processo não é um exercício de previsão, mas uma forma de lucidez. Ela nos lembra que as narrativas de salvação coletiva carregam, muitas vezes, a mesma dose de fantasia que as utopias tecnológicas que nos trouxeram até aqui. E talvez o papel mais importante da ficção — e da filosofia — seja justamente esse: dissipar as ilusões reconfortantes que nos impedem de enxergar o presente. O clima não está em crise; nós é que estamos.
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