A Serenidade da Catástrofe: reflexões sobre a imprensa e o mito do equilíbrio

Como em tantas encruzilhadas históricas, a pretensão de neutralidade revela menos prudência do que medo — e prepara o terreno para formas renovadas de servidão


Há momentos na vida política em que a busca pelo equilíbrio deixa de ser uma virtude e se converte em superstição. A democracia liberal, tão orgulhosa de seus rituais de moderação, descobre tarde demais que sociedades não se sustentam apenas por normas, mas por hábitos de imaginação — e, sobretudo, por uma disposição para encarar o perigo sem rodeios. O Brasil de 2018 não foi uma exceção à regra; foi apenas uma versão tropical de um fenômeno recorrente na história moderna: quando instituições se aferram a um ideal abstrato de imparcialidade, a barbárie encontra um caminho fácil para se apresentar como alternativa legítima.

Desde então, parte considerável da imprensa brasileira se aferrou a uma narrativa confortável: a ascensão da extrema direita teria sido um acidente fomentado pelos excessos de seus adversários. Trata-se de um conto de inocência conveniente. Ao transformar a catástrofe em simetria, a imprensa adota um modo de interpretação que, na superfície, parece equilibrado, mas que na essência dissolve responsabilidades. É assim que a brutalidade se naturaliza: não como ruptura, mas como mais um ingrediente na receita de uma polarização inevitável.

Esse movimento não é novo. Ao longo do século XX, democracias maduras cultivaram formas sutis de autoengano justamente para evitar encarar o fato de que a liberdade não é o estado natural das sociedades, mas uma exceção frágil sustentada por vigilância constante. O jornalismo brasileiro, em sua adesão ao “outro lado” como mantra profissional, repete o erro clássico das democracias fatigadas: insiste em submeter a verdade ao protocolo. A fórmula, repetida à exaustão, acaba por legitimar um dilema falso — como se a violência política fosse uma opinião e não um método.

Os relatos recentes de repórteres perseguidos, ameaçados e expostos à crueldade das milícias digitais revelam a assimetria que o discurso da neutralidade tenta soterrar. É revelador que tais obras, apesar de valiosas, ainda hesitem em examinar a cumplicidade estrutural da imprensa na fabricação do monstro que agora tentam descrever. É o velho paradoxo liberal: denunciar os abusos do poder enquanto se resiste a admitir que, por ação ou omissão, ajudou-se a criar as condições que os tornaram possíveis.

John Stuart Mill acreditava que a liberdade florescia quando todas as posições eram expostas e confrontadas à luz da razão. Mas Mill viveu antes de a política se tornar um ramo especializado da indústria do ressentimento. Uma imprensa que insiste em enquadrar a violência como opinião não está exercitando o pluralismo; está, involuntariamente, celebrando uma forma de irracionalismo que reduz a vida democrática a espetáculo.

O doisladismo, essa versão moderna da velha prudência burocrática, opera como uma tecnologia do desgaste moral. Ele transforma agressões em “controvérsias”, falsificações em “alegações”, ameaças explícitas em “declarações polêmicas”. A adversativa é seu instrumento preferido: tudo é dito para que nada seja afirmado. É uma retórica que devolve ao leitor um mundo neutro — e portanto irreal — no qual todas as forças merecem idêntica consideração. A história, porém, é pródiga em demonstrar que a neutralidade diante da selvageria não é moderação; é capitulação.

Jana Viscardi, ao chamar atenção para os detalhes aparentemente banais da linguagem jornalística, aponta para aquilo que sociedades frequentemente se recusam a ver: a política começa na gramática. Cada “suposto”, cada “denunciado por”, cada construção que evita o sujeito responsável pelo dano, opera como um mecanismo de anestesia coletiva. A linguagem que pretende apenas descrever o mundo acaba por moldá-lo — e geralmente em benefício daqueles que já detêm poder.

O episódio da republicação de um texto de Jair Bolsonaro numa antologia dedicada à celebração da democracia revela a que ponto chegamos. Não se trata de um gesto de pluralismo, mas da consagração tardia de um instinto autodestrutivo: o de acreditar que a democracia, para ser fiel a si mesma, deve acolher até aqueles que desejam destruí-la. A história mostra que essa magnanimidade raramente termina bem. Ao tentar ser generosas com seus inimigos, democracias acabam trocando a autocrítica pela indulgência — e a prudência pela autoparódia.

O jornalismo, ao adotar o doisladismo como marca de responsabilidade, sacrifica justamente aquilo que lhe daria utilidade pública: a capacidade de discriminar. Sociedades não desmoronam porque seus inimigos são fortes, mas porque aqueles que poderiam resistir preferem ser vistos como razoáveis. A imprensa brasileira, ao suavizar o intolerável, pratica um tipo de melancolia política típica de épocas de esgotamento: a crença de que a estabilidade pode ser preservada mesmo quando a verdade é deformada.

A catástrofe, como sempre, não chega de súbito. Ela se insinua através de escolhas prudentes, editorias equilibradas, manchetes ponderadas. É na busca ansiosa pelo centro que democracias se perdem; e é na recusa em aceitar a assimetria moral do conflito que o liberalismo revela sua vocação trágica. O Brasil recente apenas confirma esse padrão: quando a imprensa decide que a realidade é inconveniente, quem triunfa não é a verdade, mas o poder.

No fim, o que os últimos anos revelam é algo que tenho reiterado a propósito das democracias contemporâneas: não somos vítimas de forças extraordinárias, mas de nossas próprias ilusões. A neutralidade, tão celebrada como garantia de civilidade, transformou-se em álibi para evitar confrontar o óbvio. E, como sempre, o preço da recusa em olhar para o abismo é acabar vivendo dentro dele.


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