Há uma crença persistente na imaginação moderna: a de que toda diferença notável é, no fundo, uma forma de promessa — um prenúncio de excelência, uma semente de grandeza, um recurso que o indivíduo, como uma pequena empresa de si mesmo, deveria saber explorar. Essa crença é tão arraigada que raramente percebemos seu aspecto mais brutal: ela recusa à vulnerabilidade qualquer reconhecimento que não seja lido como falha pessoal.
As chamadas “altas habilidades” habitam exatamente essa zona de crueldade conceitual. São celebradas como se fossem uma vantagem moral, quando na verdade muitas vezes são apenas uma forma mais intricada de desamparo. A sensibilidade extrema — à luz, ao ruído, às texturas e ao tumulto emocional do convívio humano — é descrita como refinamento, mas vivida como fragilidade.
No imaginário progressista, talento é um triunfo; na experiência concreta, é frequentemente uma armadilha sensorial.
Não surpreende que, para muitos, a infância e a adolescência tenham sido períodos de suplício. O mundo social das crianças é uma pequena hierarquia de sobrevivência: tudo o que não se conforma ao padrão é punido, não por maldade, mas por instinto. Quando essa diferença ocorre no contexto da pobreza, ela ganha tons mais severos. O pobre não tem o privilégio de ser excêntrico. A miséria exige uniformidade. Ela tolera pouco e perdoa menos.
Em bairros carentes, uma criança sensível não é vista como promissora — é vista como defeituosa.
A modernidade tenta nos convencer de que todos somos livres para nos reinventar, mas essa liberdade nunca existiu fora dos slogans. A maior parte do que determina nossas vidas — temperamento, intensidade sensorial, capacidade de adaptação — nos antecede. Acreditar no contrário é apenas mais uma ilusão humanista. As culturas variam, mas o desconforto diante do diferente é constante. E assim o “dotado”, deslocado por natureza, vê sua diferença transformada não em reconhecimento, mas em suspeita.
Na cidade pequena, ele se torna arrogante por existir; na cidade grande, irrelevante por não performar.
Quando a sociedade discute minorias, costuma pensar naquelas que se encaixam na narrativa progressista: grupos que podem ser transformados em símbolos edificantes. Pessoas com altas habilidades não servem a esse propósito. São desconfortáveis demais, intensas demais, difíceis demais de domesticar. A cultura prefere seus desajustados carismáticos — não aqueles que paralisam diante do excesso de realidade.
Assim, permanece o equívoco: vê-se privilégio onde há apenas outro tipo de sofrimento.
O aspecto mais sombrio disso tudo é que não existe resolução redentora dentro do próprio mito humanista. Não há um ideal de autonomia que possa corrigir a sensação de inadequação constante; não há política pública que elimine o descompasso entre o indivíduo e o mundo; não há narrativa que transforme vulnerabilidade estrutural em triunfo pessoal sem falsificá-la. A sociedade moderna idolatra o talento, mas apenas quando ele entretém, produz ou inspira. Quando ele apenas dói, ela o descarta.
E no entanto — é exatamente nesse ponto que algo como catarse pode emergir — a lucidez que acompanha essa condição é uma forma de libertação que o mundo não sabe nomear. Ao perceber que suas “altas habilidades” não são uma promessa, mas um limite; não uma dádiva, mas uma forma específica de fragilidade; não um privilégio, mas um modo particular de exposição ao sofrimento, algo improvável acontece: a ilusão meritocrática finalmente desmorona.
E com ela cai também o peso da expectativa alheia.
O que resta, depois que o mito se dissolve, não é desespero, mas uma liberdade rara:
a liberdade de não precisar justificar a própria existência em termos de utilidade, brilho ou excepcionalidade.
A liberdade de abandonar o papel que nunca pediu para representar.
Aquela mesma sensibilidade que um dia foi vivida como fraqueza — e que o mundo tratou como extravagância — finalmente pode ser enxergada como aquilo que sempre foi:
não um dom, não um fardo, mas simplesmente a forma específica de estar no mundo que lhe coube.
E aceitar essa realidade, tal como ela é — sem redenção, sem promessa, sem narrativa — pode ser, paradoxalmente, o gesto mais profundo de liberdade que um ser humano pode realizar.
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