Vivemos um tempo em que a arte, essa velha companheira dos nossos delírios e misérias, foi convocada a servir como funcionária subalterna de um tribunal moral permanente. A cinefilia, que outrora — ao menos em nossa mitologia retrospectiva — se pretendia busca apaixonada e errante, tornou-se mais uma província do interminável esforço moderno de policiamento das almas. Não há obra que escape incólume: antes mesmo de existir enquanto experiência, ela deve atestar sua conformidade com um catecismo ideológico de turno.
Chocamo-nos com esse comportamento como se fosse uma aberração nova, mas ele não passa de uma reencenação particularmente caricatural de uma velha esperança moderna: a de que, se apenas conseguíssemos purificar o mundo de seus desvios — morais, políticos, estéticos — finalmente repousaríamos na certeza. A arte seria então a confirmação permanente de nossas crenças; o mundo, por sua vez, uma sala de espelhos.
A inquietação que Sérgio Alpendre (V. 'O Agente Secreto' é bom, mas peca em excesso de ideias e final frustrante) registra — esse amor e ódio instantâneos, pré-obra, pré-experiência — é apenas o sintoma mais recente de uma patologia duradoura: a crença de que nossas identidades políticas podem nos proteger da dissonância, da dúvida, da estranheza. O “lado certo da história”, que agora serve de bússola universal, promete uma orientação segura, mas apenas porque reduz a complexidade da vida humana a uma batalha pueril entre torcidas. Em nome da política, abrimos mão do que é mais valioso: não a neutralidade impossível, mas a autonomia sempre frágil do pensamento.
A modernidade, com seu império de promessas, fez-nos crer que o debate público é o lugar onde a razão triunfa, onde o melhor argumento vence. Mas eu — cético das certezas emancipatórias — penso que as ideologias são apenas religiões com pior literatura, e que sua tarefa essencial é oferecer abrigo aos que temem a contingência do mundo. A polarização estética nada mais faz do que seguir esse impulso: entregar nossas percepções à vigilância de uma ortodoxia que decide, antecipadamente, o que pode ser admirado e o que deve ser banido.
O problema não é novo. A literatura sempre resistiu a esse uso instrumental, não por virtude — virtudes são outra forma de superstição —, mas por natureza. Ela é multívoca, escorregadia, demasiado humana. Reúne ambiguidades como quem coleciona feridas. E é justamente por isso que, como dizia Lionel Trilling, os autores dignos de serem lidos são aqueles que ferem nossos valores mais íntimos com a mesma facilidade com que nos iluminam. A arte desobedece; e é por isso que tantos tentam domesticá-la.
Mas o que assusta não é o gesto higienizador — esse é tão antigo quanto Platão. O que assusta é a voluntariedade com que nos submetemos a ele: nossa ânsia de que interpretam por nós aquilo que nos inquieta. Não suportamos mais a solidão diante de uma obra. Queremos segurança, não experiência. Queremos sentido, não risco.
E no entanto, os grandes escritores — os tão canceláveis quanto indispensáveis — sempre souberam que a moralidade humana não cabe em nossos esquemas. Riobaldo, ao lamentar as “ideias arranjadas”, já intuía aquilo que as democracias liberais, as utopias revolucionárias e a cultura digital insistem em ignorar: que, por trás de nossas doutrinas, existe apenas o “mundo-humano”, refratário, imprevisível, cheio de contradições que não se deixam pacificar.
Talvez por isso seja tão difícil admitir algo tão simples: é possível admirar profundamente uma obra que contradiz tudo aquilo que defendemos. É possível ser transformado por um autor cuja cosmovisão rejeitamos. É possível — e talvez necessário — reconhecer que a arte que mais importa é aquela que nos estraga as certezas, que nos priva da pureza moral à qual secretamente aspiramos.
As obras que sobrevivem — Borges, Guimarães Rosa, Nabokov, Eliot, Mencken, Kraus — não são manuais de conduta, mas laboratórios de conflitos. Elas não nos tornam melhores; tornam-nos mais conscientes da vastidão de nossas falhas. E não há nada mais politicamente subversivo do que isso.
Pois se tudo isso soa sombrio, é porque ainda acreditamos que o papel da arte seria nos reconciliar com o mundo. Eu vos digo o contrário: não há reconciliação possível; o mundo é menos um enigma a ser decifrado do que uma sucessão de forças indiferentes a nossos projetos. A verdadeira libertação está em desistir de dobrá-lo ao nosso desejo.
E, paradoxalmente, é exatamente isso que nos devolve algo que as polarizações contemporâneas nos roubaram: o prazer de não saber previamente o valor de uma obra.
A arte não deve ser o prolongamento das nossas convicções — deve ser o intervalo em que elas são suspensas. Quando abrimos mão do sonho de pureza, recuperamos aquilo que as torcidas digitais não podem oferecer: a possibilidade do encontro inesperado, do estranhamento, da nuance que escapa ao nosso vocabulário político.
No fim, política pode estar em tudo, mas política não é tudo. A vida interior — esse espaço frágil, sempre em risco — cresce justamente onde nossas certezas falham. Nas lacunas, nas ambiguidades, nas dissonâncias.
E é por isso que, diante do filme que ainda não vimos, do livro que contradiz nossas crenças, do autor que seria repudiado por qualquer tribunal contemporâneo, ainda podemos dizer, com Borges — e contra todos os que desejam reduzir o mundo a slogans:
There are more things.
You'll Love These
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