O Homem Que Guarda os Mortos e Salva os Vivos do Esquecimento


Por Samio Cássio*

Na esquina da Rua Pensilvânia com a manhã, lá onde o sol demora a tocar o chão porque a sombra das mangueiras ainda é espessa, vive um homem que há 57 anos observa a cidade sem pressa. A casa — baixa, paredes gastas, cor indefinida — parece ter surgido antes mesmo da rua. E talvez tenha: é a primeira dali, construída quando o bairro Euclides Neto ainda ensaiava existir, e onde Valdomiro Amâncio da Silva instalou sua vida como quem finca uma bandeira silenciosa.

Valdomiro, a quem todos em Ipiaú chamam de Valdomiro Coveiro, tem 81 anos e nasceu quando o Brasil ainda aprendia a pronunciar a própria modernidade. Diz a data com precisão — 24 de maio de 1942 — e, ao fazê-lo, leva a mão ao queixo, como quem revisita a fotografia desbotada de uma época. Cresceu em Itagibá, ouvindo o pai cantar cocos ao pé de fogueiras improvisadas, enquanto a noite engolia os sons da roça. O pai, Timóteo, era daqueles homens que carregavam a música como uma segunda pele, e Valdomiro herdou essa marca como herança inevitável.

Mas foi somente aos 20 anos, quando se mudou para Ipiaú, que a vida começou a assumir contornos de destino. O prefeito era José Motta Fernandes — nome ainda dito com respeito por quem viveu aqueles anos — e a cidade, embora pequena, anunciava alguma promessa de futuro. Valdomiro chegou, conseguiu trabalho como ajudante de pedreiro e começou a levantar paredes de escolas que, décadas depois, alfabetizariam seus netos.

Nessa época, morava em quarto alugado, e lembra-se de caminhar pelas ruas de terra com os sapatos pendurados no ombro, economizando sola para o serviço. Mas foi esse mesmo rapaz magro, de fala baixa, que conheceu em Ibirataia a jovem Carmelita, de apenas 17 anos, e decidiu que era com ela que construiria uma família — não por impulso, mas por uma convicção serena, dessas que nascem do olhar. Casaram-se cedo: ele tinha 19; ela, 17. E desde então não se desgrudaram.

Seis filhos vieram — Antônio, Gildevan, Gilvando, Girleli, Ginival e Rita — como capítulos sucessivos de uma história que nunca teve luxo, mas teve sempre firmeza.

O Repórter Visita a Casa do Coveiro


Quando se bate à porta da casa de Valdomiro, ele abre devagar, como se antes escutasse se quem está do lado de fora vem em guerra ou em conversa. A voz é suave, mas os gestos são firmes. No canto da sala, há instrumentos que já não tocam tanto quanto antes. Na parede, fotografias antigas onde ele surge mais alto, mais forte, como se o tempo o tivesse diminuído fisicamente, mas ampliado moralmente.

Ele fala da morte com a naturalidade de quem já a viu de perto mais vezes do que gostaria. Trabalhou por muitos anos como coveiro, sempre ao lado de José Candola, figura lendária do ofício. “A gente enterrava com respeito”, diz. “Não era só jogar terra. Tinha uma palavra pra cada família.”

A palavra dele, dizem, acalmava. Talvez porque Valdomiro sempre soube que a morte tem um peso que precisa ser dividido.

Mas se ele enterrava os mortos, também fazia outra coisa: desenterrava tradições. Foi assim que encontrou seu verdadeiro lugar.

O Encontro com Zaqueu

Há homens que entram na vida da gente como trovões; outros, como brisas. Zaqueu, para Valdomiro, foi ambas as coisas.

Zaqueu era cantador respeitado, desses que lideram rodas de samba como quem comanda navio em mar revolto. Quando Valdomiro o conheceu, ainda recém-chegado à cidade, o mestre o puxou pela mão e o apresentou a um mundo que misturava poesia, suor e ancestralidade. Os dois formaram parceria de décadas, atravessando micaretas, festas de São Roque, exposições agropecuárias, e noites longas onde o samba parecia ser a única língua possível.

Ali, Valdomiro descobriu que a música poderia ser também uma forma de cuidado — tão profunda quanto as despedidas que presenciava no cemitério.

Com o tempo, outros nomes se somaram ao seu convívio: Senhorinha e o filho Cosme, Etelvina do cordão tupinambá, Lindolfo, Dona Eulina, Militão, Nicodemos, Miguel, Cafuringa, Euclides, Bico de Agulha, Adenorzinho, João, Noemi e o jovem Bijoga, cuja morte precoce ainda entristece a quem o menciona.

Hoje, muitos desses nomes vivem apenas na memória — mas é justamente essa memória que Valdomiro insiste em salvar.

O Bumba Meu Boi, Entre a Morte e o Riso




Talvez nenhuma manifestação cultural represente melhor o espírito de Valdomiro do que o Bumba meu Boi.

A lenda — que ele conta como se tivesse testemunhado — fala de Pai Francisco e Mãe Catirina, escravizados que transformaram um desejo gestante em tragédia, culpa e festa. É a história do boi morto e ressuscitado, do perdão e da celebração.

Aos olhos de um coveiro, pode-se imaginar o que significa reviver simbolicamente um animal. Talvez, no íntimo, Valdomiro sempre tenha buscado isso: ressurreições.

O Terno de Reis e a Fé Que Anda Pelas Casas

Entre dezembro e janeiro, quando a cidade se prepara para renovar o ano, Valdomiro muito caminhou, com violas e vozes acompanhando-o. O Terno de Reis, de origem portuguesa, é uma tradição que exige devoção, paciência e um espírito que não se cansa facilmente.

De casa em casa, ele e seus companheiros entoavam cantos sobre os Reis Magos, recebendo café, bolo, moedas ou apenas olhares emocionados. Era menos espetáculo do que ritual; menos performance do que peregrinação.

E para Valdomiro, cada porta aberta era também um reconhecimento.

A Cidade Que Esquece Seus Guardiões

O homem que tanto deu à cultura de Ipiaú lamenta, com a serenidade de quem já viu muita coisa desaparecer, a falta de apoio público e privado às manifestações populares. Fala da dança do coco como quem fala de algo vivo — um ser que respira, muda, adapta-se a cada região. Por isso insiste em chamá-la no plural: cocos, pois cada lugar inventa o seu.

E aqui, Ipiaú — terra de indígenas, africanos e portugueses misturados na mesma panela — ainda carece de estímulo. “A gente não quer dinheiro”, diz ele, “quer atenção”.

O repórter percebe que ele não reclama por si, mas pelos que vieram antes, pelos que já não podem reclamar.

O Guardião Invisível

Há algo singular em Valdomiro: sua vida não cabe num só título. Ele foi pedreiro, servidor público, coveiro, sambador, mestre de Terno de Reis, brincante de Bumba meu Boi, pai, marido, carregador de tradições.

Mais do que isso: ele é um arquivo vivo, uma biblioteca que respira e que, a cada ano, perde páginas para o tempo. E, ainda assim, permanece.

Talvez por isso seja urgente dizer seu nome. Urgente reconhecê-lo, enquanto ainda abre a porta com calma, enquanto ainda mostra os instrumentos, enquanto ainda consegue citar — um por um — os mortos e vivos que construíram, junto dele, a história cultural da região.

O Homem Que Permanece

No fim da visita, Valdomiro se senta na cadeira de madeira, ajeita o chapéu e mira a rua onde já viu crianças crescerem, casais se separarem, vizinhos partirem. A rua mudou, mas ele permaneceu.

Disse certa vez que “há público para todas as manifestações”. A frase, simples, carrega uma defesa poderosa: a de que o Brasil profundo não precisa escolher entre a cultura de massa, a cultura sacra e a cultura popular. Podem coexistir — desde que alguém esteja disposto a carregá-las.

Em Ipiaú, esse alguém tem nome.
Tem história.
Tem voz.
Tem fé.
E tem, sobretudo, a insistência de quem sabe que tradições só morrem quando ninguém as guarda.
Valdomiro as guarda.
E enquanto ele existir, nada estará completamente perdido.

*Samio Cássio (o autor desse texto) é graduado em História pela UNEB (2017–2022), com TCC sobre a representatividade e a trajetória de Adenor dos Reis Soares em Ipiaú-BA. Especialista em Gênero, Raça, Etnia e Sexualidade pela UNEB (2023–2024), com pesquisa sobre a vida e as lutas de Léa Simões dos Santos no município. Ele cedeu gentilmente sua produção para que pudéssemos publicar aqui.

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