O futuro como superstição



A ideia de futuro, tal como herdada pela modernidade, não é uma descoberta racional, mas um resíduo teológico. Antes de Paulo, o tempo não precisava justificar-se. Ele passava, repetia-se, corroía tudo igualmente. A escatologia cristã introduziu uma exigência inédita: o tempo deveria responder por si mesmo. Deveria conduzir a algum lugar. Deveria culminar. A partir daí, viver passou a significar esperar — não no sentido trivial, mas metafísico. Esperar que o mundo se explicasse.

John Gray insiste que essa expectativa não é apenas ilusória, mas perigosa. Quando o futuro é investido de sentido moral, o presente torna-se descartável. Sacrifícios deixam de ser tragédias e passam a ser meios. Mortes tornam-se estatísticas provisórias. Catástrofes são toleradas como etapas necessárias. A crueldade, quando exercida em nome de um fim último, adquire um ar de virtude.

Paulo acreditava que o mundo estava condenado. Não havia como salvá-lo, apenas atravessá-lo. A destruição iminente relativizava todas as perdas. Esse desprezo pelo mundo não impediu a violência; apenas a tornou irrelevante. Se tudo estava prestes a desaparecer, nada precisava ser preservado. O mesmo raciocínio reaparece, secularizado, sempre que se declara que certas formas de vida são incompatíveis com o futuro da humanidade.

O problema não é prever desastres. Catástrofes existem e continuarão existindo. O problema é transformá-las em narrativa redentora. Quando o colapso deixa de ser um risco e passa a ser um capítulo necessário da história, ele se torna desejável. Há uma estranha excitação moral em anunciar o fim. Um alívio perverso em acreditar que a complexidade do mundo será reduzida a um julgamento final, ainda que simbólico.

O cristianismo primitivo viveu dessa excitação. Cada terremoto, cada fome, cada perseguição parecia confirmar que o fim estava próximo. Quando o fim não veio, a excitação precisou ser domesticada. O apocalipse foi empurrado para um horizonte indefinido. A espera tornou-se longa, mas não menos intensa. A história passou a ser lida como uma série de sinais, nunca como um processo sem direção.

A modernidade herdou essa leitura paranoica do tempo. Mesmo quando se declara pós-religiosa, continua à procura de sinais. Crises econômicas, colapsos ambientais, convulsões políticas — tudo é interpretado como prenúncio de um ponto de inflexão decisivo. O vocabulário muda, mas a estrutura permanece. Ainda se fala em “antes” e “depois”, em “ponto sem retorno”, em “momento decisivo da humanidade”. O apocalipse foi traduzido em linguagem técnica.

Gray observa que essa obsessão com o futuro não melhora nossa relação com o presente. Pelo contrário, ela a deteriora. Incapazes de aceitar a contingência, os homens projetam sobre o amanhã expectativas que o amanhã não pode cumprir. Quando essas expectativas falham, como sempre falham, a frustração se converte em raiva. O futuro, que deveria redimir, passa a acusar.

A escatologia cristã oferecia ao menos uma saída: o fracasso do mundo era compensado por uma promessa fora dele. As escatologias seculares não têm essa válvula de escape. Quando o progresso decepciona, não há para onde olhar. A esperança frustrada não se dissolve; ela se radicaliza. Exige mais sacrifícios, mais vigilância, mais pureza ideológica. O fim, sempre adiado, torna-se mais tirânico.

Paulo acreditava que a morte perdera seu poder porque seria abolida em breve. Essa crença permitia desprezá-la. Mártires podiam ser celebrados. O sofrimento adquiria valor. Hoje, sem a promessa da ressurreição, a morte voltou a ser absoluta. Ainda assim, continuamos a tratá-la como se fosse provisória, desde que ocorra em nome da causa certa. O paradoxo é cruel: rejeitamos a transcendência, mas mantemos sua lógica sacrificial.

Talvez o traço mais persistente do paulinismo seja a recusa em aceitar que nada nos espera. Que não há síntese final, nem reconciliação, nem ajuste de contas universal. Para Gray, essa recusa é compreensível, mas infantil. O desejo de sentido não cria sentido. O anseio por redenção não torna o mundo redimível. Persistir nessa expectativa é prolongar o sofrimento que ela promete curar.

Aceitar a ausência de finalidade não nos torna melhores, nem mais felizes. Apenas mais lúcidos. A história não caminha para lugar algum. Ela apenas acontece, de maneira desigual, violenta e indiferente. O futuro não é uma promessa; é uma repetição com variações. O erro de Paulo não foi acreditar no fim do mundo, mas acreditar que o mundo precisava de um fim para fazer sentido.

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