Conversão como ruptura e fuga


A conversão, no sentido paulino é uma fratura. Um colapso interior que torna a vida anterior irreconhecível, quase obscena. Paulo não propõe um aperfeiçoamento da existência humana; ele a declara inviável. Tudo o que veio antes é lixo, carne morta, erro. O homem convertido não é alguém que aprendeu algo novo, mas alguém que foi arrancado de si mesmo. Essa violência inicial nunca foi superada pelo cristianismo; apenas foi administrada.

John Gray insiste que as grandes crenças redentoras exigem esse gesto inaugural de aniquilação. Para que o futuro absoluto possa nascer, o presente precisa ser desqualificado. Nada do que existe basta. Nada do que somos merece continuar. A conversão não liberta; ela substitui uma prisão por outra, geralmente mais estreita, porém dotada de sentido. A liberdade prometida é sempre adiada, situada além da morte, além da história, além do mundo tal como é.

O fascínio de Paulo não está na coerência de seus argumentos, mas na intensidade de sua experiência. Ele não persuade; ele contagia. Não demonstra; afirma. Seu discurso não apela à razão, mas à exaustão. Dirige-se aos que já não suportam o peso de viver sem uma explicação última. Aos que experimentaram o fracasso, a doença, a culpa ou o vazio como algo intolerável. A esses, ele oferece uma narrativa total, capaz de reorganizar o caos interior ao preço da submissão completa.

Essa dinâmica não desapareceu. Apenas mudou de vocabulário. As ideologias modernas também exigem conversões. Não no sentido religioso, mas psicológico. Pedem que o indivíduo reconheça que viveu até então numa falsa consciência, numa alienação estrutural, numa ignorância moral. A partir daí, tudo se reordena. O passado torna-se erro, o presente torna-se luta, o futuro torna-se promessa. A semelhança com o esquema paulino não é acidental; é hereditária.

A conversão tem ainda outra função: ela protege o convertido da ambiguidade. O mundo, antes confuso e opaco, torna-se subitamente legível. O bem e o mal se separam com clareza brutal. Os salvos e os perdidos ocupam campos distintos. A dúvida, que antes corroía, agora é sinal de fraqueza ou tentação. Essa clareza é intoxicante. Em troca dela, o convertido aceita a perda de complexidade, de ironia, de hesitação — tudo aquilo que torna a vida humana suportável, mas intelectualmente instável.

Paulo não tolerava a indiferença. Os que não acreditavam eram inimigos, mesmo quando silenciosos. A neutralidade era impossível porque o tempo era curto. A urgência escatológica transforma qualquer desacordo em ameaça existencial. Essa lógica reaparece sempre que uma visão de mundo se apresenta como a última oportunidade antes do desastre final. Quem não adere não é apenas ignorante; é cúmplice do mal que se aproxima.

Gray observa que o humanismo secular herdou esse traço sem perceber. Ao declarar certas crenças ou atitudes como inaceitáveis para o futuro da humanidade, ele recria a divisão paulina entre os que estão do lado certo da história e os que serão varridos por ela. A história, novamente personificada, assume o papel que antes cabia a Deus. Ela julga, pune e absolve. Não há apelação possível.

A diferença é que, ao contrário do cristianismo primitivo, as escatologias modernas não admitem seu caráter mítico. Apresentam-se como científicas, racionais, inevitáveis. O fracasso, quando ocorre, é atribuído a desvios contingentes, nunca à estrutura da crença. O fim prometido é sempre adiado, mas jamais abandonado. Assim como os primeiros cristãos aprenderam a conviver com a ausência do retorno de Cristo, os modernos aprenderam a conviver com a ausência do progresso definitivo.

O custo psicológico dessa espera é elevado. Viver orientado para um futuro que não chega produz ressentimento, ansiedade e uma agressividade latente. A promessa não cumprida precisa ser defendida com mais fervor do que a promessa recente. Quanto mais o tempo passa, mais intolerável se torna a dúvida. A crença, para sobreviver, precisa se endurecer.

Paulo acreditava que o sofrimento era transitório. Que a dor, a doença e a injustiça eram sinais de um mundo prestes a ser substituído. Essa crença não eliminava o sofrimento; apenas o reinterpretava. Dava-lhe um lugar numa narrativa maior. Quando essa narrativa se rompe, o sofrimento retorna em estado bruto, sem explicação nem recompensa. O homem moderno herdou a dor, mas perdeu o enredo que a tornava suportável.

Talvez por isso as escatologias seculares sejam tão agressivas. Elas precisam compensar a ausência de transcendência com intensidade moral. Onde não há salvação garantida, há cruzadas intermináveis. Onde não há juízo final, há julgamentos constantes. O espírito de Paulo sobrevive menos na fé religiosa do que na recusa moderna de aceitar a finitude sem promessas.

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