Num tempo em que as elites culturais se fingem de pobres e os pobres, por sua vez, são desfigurados em laboratório estético por gente que jamais sujou as mãos com uma hora de trabalho braçal, parece quase natural — patológico, mas natural — que surjam figuras como Tati Bernardi e Vincenzo Latronico. Ambos — e aqui não há mistério nem teoria conspiratória — escrevem a partir da experiência íntima com o conforto material. Fazem literatura de classe a partir da classe. Da sua. E fingem que a expõem.
A Tati, de São Paulo; o Vincenzo, de Roma ou Berlim, tanto faz — cosmopolitismo de catálogo. Ela se instala como a “boba da corte”, apelido que já nasce pretensioso: sugere crítica travestida de piada, quando é só piada travestida de crítica. Ele escreve As perfeições, uma imitação tardia e auto-higiênica do Georges Perec — como quem coleciona embalagens de perfume e chama isso de arqueologia dos sentidos. Ambos, com seriedade ensaiada e bom humor programado, se colocam diante do espelho da autoficção como quem se confessa num talk show: muito close, nenhuma transcendência.
A “boba da corte” não pretende ser apenas engraçadinha: quer ser vista como a Annie Ernaux da Avenida Faria Lima. A diferença é que Ernaux escreveu depois de viver o esmagamento simbólico da classe operária — e escreveu contra o silêncio. Já Tati escreve contra o tédio. E o tédio, nesse caso, é o produto interno bruto de uma vida confortável. O umbigo, como sabemos, não tem nervo, mas causa coceira. E a autoficção contemporânea é isso: gente se coçando diante do espelho.
Latronico, por sua vez, não faz pastiche por ignorância, mas por método. As perfeições não é homenagem — é operação estética de um sistema de produção cultural em que a repetição virou valor. Não escreve contra a classe, mas a partir dela e por ela. Os móveis reciclados, os objetos vintage, os cafés orgânicos e o tédio dos “nômades digitais” são tratados como se fossem denúncia, quando são apenas o retrato fidelíssimo do próprio habitat natural do autor. O desconforto é retórico; a crítica, decoração.
O problema — e aqui está o nó — não é o conforto. Não é o privilégio. É a mentira estética e moral de fingir que se está contra aquilo que se vive com gosto. Tati Bernardi declara desconforto com os bairros ricos de São Paulo, mas não os abandona — como alguém que detesta o espelho e vive diante dele. E Vincenzo transforma o desespero da gentrificação em cenografia. Ambos são sintoma do esvaziamento da literatura como forma de confronto com a realidade — e da ascensão da ficção como zona de conforto estilizada.
“Autossociobiografia” e “autoficção”: dois termos que a intelligentsia cultural adotou com um entusiasmo quase pornográfico. O primeiro exige esforço: trata-se de refletir sobre si no mundo. O segundo é desculpa: olhar para si como se o mundo não existisse. Tati se acomoda na segunda categoria. Mas seu mérito, se há algum, é saber disso — e converter a consciência da própria futilidade em produto. O que não quer dizer que seja inocente.
Ela — a autora ou a personagem? A pergunta é velha e inútil — fala de si como quem se justifica preventivamente. Cria uma outsider de boutique, uma excluída do clube do qual é sócia fundadora. E acredita nisso, como se a maquiagem fosse identidade. Tati se diz fora do sistema, mas está em todas as mesas de jantar onde o sistema se perpetua com vinho natural e ironia moderada. O desconforto não é político, é de almofada.
Latronico, por sua vez, acredita que emular Perec o coloca numa posição de observador clínico da elite cultural berlinense. Mas falta-lhe a angústia histórica que fazia do experimentalismo de Perec uma tentativa desesperada de dar forma à desintegração da experiência. Em As perfeições, a forma não busca o real — apenas o estiliza. Não se narra a decadência, mas o mal-estar como curadoria de Instagram. A crítica é brunch com palavras difíceis.
E aqui chegamos à questão central: esses livros não são ruins porque são mal escritos. São ruins porque não acreditam em nada além de si mesmos. São literatura autocentrada, autofágica, autoconsumível. São iscas para um público que quer se ver criticado com leveza, com graça, com afeto — como quem vai ao psicanalista para ouvir que está tudo bem. A crítica virou gesto de adesão. O sarcasmo, selo de autenticidade.
Não há problema em escrever sobre os ricos, os bem-nascidos, os bem-resolvidos. Tolstói o fez. Proust o fez. Mas fizeram-no com tragédia, com mistério, com desespero. Hoje, a elite cultural escreve sobre si mesma como quem dá entrevista: com frase de efeito, com hashtags e nenhuma consequência. O “prontofalei” virou estilo. A literatura, um grande story de 15 segundos com pose de Sartre.
Se A boba da corte é uma colagem de colunas autocentradas, As perfeições é um catálogo de móveis existenciais. Nenhum dos dois ousa encarar o que realmente perturba: a própria mentira que cultivam. E isso, meus caros, não é só estética — é moral.
O que Tati e Vincenzo nos oferecem, enfim, é um espelho. Mas não daqueles que revelam. Daqueles que decoram. E o leitor, seduzido pelo reflexo, nem percebe que saiu da livraria do mesmo jeito que entrou: com a alma intacta e o espírito em suspenso.
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