O Novo Sacramento: Fé, Psicodélicos e a Ressurreição da Subjetividade



Quando se pensa em sacerdotes — padres, rabinos, monges — imagina-se figuras sólidas, sedimentadas por décadas de leitura e liturgia. Homens e mulheres que conversam com Deus (ou pelo menos se esforçam para escutar o silêncio d’Ele) enquanto o mundo moderno se esfarela em distrações. Mas ultimamente, algo curioso vem acontecendo nos bastidores do sagrado. A novidade não é teológica, mas farmacológica. Em clínicas médicas de paredes brancas e carpetes discretos, sacerdotes estão se deitando com vendas nos olhos e fones nos ouvidos, imersos em Bach, Brian Eno ou cantos tibetanos, enquanto uma substância — psilocibina, o princípio ativo de certos cogumelos alucinógenos — desfaz lentamente as bordas de suas identidades.

O projeto, liderado por pesquisadores da Johns Hopkins e da NYU, poderia ser confundido com uma sátira escrita por algum roteirista exasperado do Saturday Night Live: “sacerdotes tomam drogas para encontrar Deus”. Mas o estudo é real, e sério, e financiado por nomes bem-intencionados do mundo da espiritualidade e do capital de risco. A premissa é simples: e se a fé institucional, estagnada pela repetição e pelo formalismo, pudesse ser revitalizada por uma experiência direta do divino, induzida em laboratório?

Para isso, reuniram cerca de trinta líderes religiosos — padres, pastores, rabinos, um roshi zen e até um representante islâmico (a fé muçulmana, geralmente avessa a intoxicações, foi aqui tratada com uma flexibilidade espiritual inédita). Todos passaram por sessões cuidadosamente preparadas, com dosagens calculadas, guias treinados e playlists mais espirituais do que um casamento em Trancoso.

O que se seguiu foi uma avalanche de experiências inefáveis, que os participantes, já afeitos ao mistério, tentavam descrever com a linguagem trêmula dos convertidos. Um padre católico sentiu-se acolhido por uma presença materna e cósmica que o lembrou, ao mesmo tempo, de Maria e de sua própria mãe. Um rabino teve a impressão de que seu corpo era atravessado por uma luz que continha todas as letras do alfabeto hebraico. Um pastor presbiteriano viu a si mesmo como parte de uma tapeçaria infinita, entrelaçado com a dor e o júbilo do mundo.

Outros não tiveram visões tão poéticas. Um líder religioso viu imagens do Holocausto e passou os meses seguintes mergulhado numa crise de fé silenciosa. Um outro teve um insight que soaria banal fora do contexto: “eu não sou apenas um pastor, sou também um homem, e isso é assustador”. Houve também quem se sentisse traído pela experiência: esperava uma confirmação da própria fé e recebeu, no lugar, um vazio sem nome. Um tipo de ateísmo místico, se é que isso existe.

A maioria, no entanto, saiu transformada. Não necessariamente convencida de que Deus existe, mas menos inclinada a descartá-lo como ilusão. “Não sei mais se acredito em Deus como antes”, disse um dos participantes, “mas agora sei o que significa ‘Deus’ para mim.” O tom é revelador: não se trata mais de aderir a um dogma, mas de experimentar algo que justifique a continuidade da prática. A psilocibina, nesse cenário, não é um sacramento — mas quase.

Esse “quase” é o que torna tudo tão interessante e tão confuso. Por um lado, há uma beleza inegável na busca desses religiosos por uma fé mais encarnada, menos verbal. Eles, mais do que ninguém, conhecem os limites da linguagem e os perigos do formalismo. Não querem apenas falar de Deus: querem senti-lo, ou ao menos provar de novo a possibilidade de sua presença.

Por outro lado, há uma ironia trágica no fato de que sacerdotes — supostamente mestres da interioridade — precisem de substâncias para reencontrar o sagrado. Não é tanto um juízo moral quanto um diagnóstico cultural. Estamos num momento em que a experiência se tornou a medida de tudo. Não basta crer; é preciso sentir. E sentir intensamente. A fé virou um dispositivo que, se não entrega êxtase ou transformação, é descartado como obsoleto.

Nesse contexto, os psicodélicos oferecem o que os sermões já não conseguem: uma experiência contundente, inegociável, que afeta o corpo e desarma o intelecto. É como se a experiência de Deus, antes acessada por décadas de disciplina e silêncio, pudesse agora ser encomendada em cápsulas — como um retiro espiritual de 6 horas, com direito a curadoria sonora e acompanhamento psicológico.

A analogia com os retiros não é acidental. Vários dos participantes do estudo saíram da experiência decididos a fundar novas iniciativas espirituais. Hunt Priest, um padre episcopal, criou um programa chamado Ligare, que oferece retiros psicodélicos para cristãos em busca de renovação. Zac Kamenetz, um ex-rabino, idealizou a Shefa, organização que investiga o uso de enteógenos na tradição judaica. Ambos falam com entusiasmo sobre uma espiritualidade mais “integrada”, mais “corajosa”, mais “aberta à transformação”.

Mas nem todos estão convencidos. Há quem veja nesses movimentos o risco de uma nova forma de religião da performance, em que o critério não é mais a verdade, mas a intensidade da experiência. O risco de transformar a fé em espetáculo privado, e o sagrado em gatilho neuroquímico. O teólogo Michael Jay, um dos observadores mais atentos da cena psicodélica religiosa, alerta para a facilidade com que visões místicas podem ser convertidas em justificativas para desejos pré-existentes. “Os psicodélicos não são neutros”, ele escreve. “Eles amplificam o que já está lá. E o que está lá, hoje, é um anseio profundo por transcendência — mas também um desespero por novidade.”

A situação se complica ainda mais quando se descobre que alguns dos financiadores do estudo participaram diretamente das sessões. Entre eles, Chuck Raison, psiquiatra e diretor científico de uma empresa que desenvolve terapias psicodélicas, e Derwin Gray, pastor e CEO de uma megaigreja. Suas participações foram inicialmente omitidas do registro oficial, o que gerou críticas e questionamentos éticos.

É difícil não ver nisso uma espécie de sincretismo entre fé, ciência e mercado. Não se trata apenas de buscar Deus. Trata-se de encontrar um modelo replicável, escalável, com potencial de “transformação espiritual” validado por dados. O objetivo, afinal, é respeitável: combater o tédio existencial e a secura da vida religiosa moderna. Mas o método levanta perguntas. A fé precisa mesmo ser otimizada?

A resposta talvez esteja no modo como esses líderes descrevem suas experiências. Nenhum deles saiu dizendo: “agora eu sei a verdade”. O que dizem é: “agora eu sei que há mais”. É uma espiritualidade não dogmática, mas também não exatamente cética. Uma espécie de agnosticismo com lágrimas nos olhos. Em vez da certeza, a maravilha. Em vez da doutrina, a entrega. É bonito, mas também vulnerável — porque, sem uma tradição que sustente essas visões, elas evaporam rápido. Como sonhos, ou alucinações.

No fim, o que esse experimento revela não é tanto sobre os psicodélicos ou sobre Deus, mas sobre o estado atual da fé institucional. Os templos continuam lá, mas seus símbolos se tornaram opacos. As orações foram decoradas, mas não escutadas. Os rituais ainda funcionam, mas já não provocam espanto. A psilocibina aparece, então, como um catalisador de sentido — ou, mais modestamente, como um lembrete de que o mistério ainda é possível.

Talvez isso seja suficiente. Ou talvez não. Talvez a verdadeira experiência espiritual continue sendo aquela que se dá no escuro, sem garantias, sem música ambiente, sem acompanhamento terapêutico. Uma experiência que não precisa de doses, apenas de disposição. De silêncio. De tempo.

Mas até lá, teremos padres em transe, rabinos em chamas, monges chorando diante do vazio — todos buscando, de um jeito ou de outro, aquilo que já deveriam ter encontrado: uma presença que faça a vida valer a pena.

Ou, no mínimo, um motivo para continuar falando de Deus sem corar de vergonha.

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