A Caverna de Clarissa: A Literatura de Virginia Woolf como Epifania e Subversão



Ao escrever Mrs Dalloway — romance que hoje se tornou seu cartão de visitas para professores universitários que fingem ter lido alguma coisa além de resumos —, Virginia Woolf travou uma luta que não era apenas estética, mas existencial. Durante anos, hesitou, caiu em dúvidas lancinantes, quase jogou tudo fora. Pensava até em abandonar a literatura. Isso, num tempo em que escrever ainda era um ato de risco espiritual, e não um produto de oficina literária em grupo de Telegram.

A história de Mrs Dalloway começa muito antes da publicação: a personagem Clarissa Dalloway já dava sinais de vida em The Voyage Out, seu romance de estreia. Mais de uma década depois, ela ressurge como protagonista num conto — uma semente que germinaria no solo torturado da mente de Woolf. E como toda verdadeira criação, essa obra só foi possível quando a autora descobriu um método: o das cavernas. Um nome singelo para o que é, de fato, a tentativa de escavar o real, de iluminar o presente com as sombras do passado.

Woolf anota em seu diário — esse gênero que, diferentemente do que pensam certos leitores de autoajuda acadêmica, não é confissão de sentimentalismo, mas campo de batalha filosófico — a descoberta que a salva do abismo: escavar cavernas atrás dos personagens. A revelação do passado não como explicação causal, mas como presença espectral, que emerge quando menos se espera. Isso é um insight que escapa à imbecilidade dos que acham que literatura se faz com técnica de oficina. Não. Literatura, como dizia Dostoievski, é a encarnação do espírito no verbo.

Esse detalhe técnico, aparentemente insignificante, é o que transforma Mrs Dalloway em mais que um romance: ele se torna uma máquina do tempo, ou melhor, um sismógrafo do espírito. Um só dia, um só passeio para comprar flores, e de repente estamos mergulhados numa temporalidade dilatada, que envolve não só as memórias dos personagens, mas o trauma nacional da Inglaterra pós-guerra, a sombra da gripe espanhola, e uma angústia que não tem data.

Woolf, com isso, faz algo que a mediocridade contemporânea só sonha em imitar: mostra que o detalhe é o absoluto. Que a experiência trivial — o toque de um perfume, o som de um violino, o gesto de comprar flores — carrega em si a metafísica. Que o momento é uma revelação. Isso, claro, exige do leitor algo que já não se encontra com facilidade: presença de espírito, atenção, silêncio.

E é aqui que sua obra adquire, contra todas as expectativas, uma atualidade brutal. Porque, se há um século Clarissa Dalloway passeava entre sombras e revelações, hoje fazemos o mesmo, ainda que anestesiados pelo ruído digital. A técnica das cavernas é, no fundo, um antídoto contra a linearidade banal da vida moderna. Não se trata de nostalgia, mas de profundidade.

O mais extraordinário, porém, é que Woolf, ao fazer isso, escreve com o corpo, com a alma, com aquilo que Pascal chamava de “a razão do coração”. O trecho em que Clarissa recorda seu desejo por Sally Seton — que muitos leitores sonolentos deixam passar como se fosse mais uma florzinha no jardim — é, na verdade, uma epifania erótica digna de Platão. Ali está o desejo, o orgasmo, a iluminação, não como pornografia barata, mas como verdade metafísica. Uma revelação que se dá e logo se retira, como tudo o que é verdadeiro.

Ao traduzir Mrs Dalloway, a autora desse testemunho contemporâneo não está apenas trocando palavras de um idioma para outro. Está refazendo o trajeto iniciático de Woolf. Entre bolos de maçã e reuniões de escola, entre pandemias e visitas a doentes, ela reconstrói, palavra por palavra, o túnel secreto que conecta Clarissa, Septimus, Virginia, e ela mesma. Uma cadeia de almas que atravessa o tempo. Isso é literatura. Isso é o que permanece quando todo o resto — teses, congressos, resenhas de jornal — vira pó.

Mrs Dalloway sobrevive não porque seja “importante” no cânone feminista, ou porque modernistas o endeusaram em seus seminários tediosos, mas porque sua autora teve a ousadia de transformar fragilidade em forma. De encontrar, na linguagem, um refúgio e uma lança. E quem não entende isso pode continuar lendo seus manuais e premiando seus panfletos. A literatura, porém, estará em outro lugar. Num túnel. Num momento. Numa caverna.

José Fagner Alves Santos

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