Dizem que cada geração conta sua história, mas essa é apenas mais uma fábula moderna para consolar o sujeito que perdeu as rédeas da História. A tal “geração” de que falam os sociólogos é, na melhor das hipóteses, uma estatística afetiva, uma abstração romântica, uma tentativa de montar um vitral com os cacos que sobram da experiência. Na pior, é um álibi para justificar a ignorância histórica transformada em identidade.
A pergunta – “é possível narrar a experiência de uma geração a partir dos relatos de alguns sujeitos que são parte dela?” – já vem contaminada de uma suposição tipicamente contemporânea: a de que o todo pode ser capturado pelas partes. Ora, isso só se admite quando se perdeu inteiramente o sentido da totalidade. Quando a transcendência desaparece, resta o mosaico: pedaços, fragmentos, ruídos. Uma colagem de subjetividades que chamam de “memória coletiva”, como se a soma de recordações privadas tivesse alguma autoridade sobre a realidade.
É claro que não é possível narrar uma geração. Nem deveria ser. A geração não é personagem, não tem enredo, não evolui. Geração é ruído. E se há algo que essa época venera com religioso fervor é o ruído. Por isso mesmo, insiste-se no fracasso como método. A estética da impotência virou virtude moral. A impossibilidade de compreender a própria época já não é reconhecida como limitação – é celebrada como estilo.
Insisto, contudo, que mesmo no fracasso há hierarquia. Um campo de destroços não é o mesmo que uma catedral em ruínas. E o que se vê nesse esforço de capturar a geração pelos escombros é, com frequência, mais próximo de um lixão do que de um templo abandonado. Um desfile de “primeiras vezes” que mais parecem slogans de campanha publicitária do que experiência histórica: o primeiro porre, a primeira transa, o primeiro computador, a primeira morte. Como se o destino de uma alma pudesse ser reduzido a uma linha do tempo de eventos vulgares. É a História como feed de Instagram.
Vejam que delírio: uma geração cujo horizonte de sentido vai da água com açúcar ao impeachment. Da pornografia de escada ao Kofi Annan batucando com Gilberto Gil. Tudo nivelado, tudo absorvido pelo mesmo filtro emocional. As chacinas se misturam ao cheiro de cigarro na adolescência. A AIDS e o chupa-cabra compartilham o mesmo parágrafo. O medo do estupro se dissolve ao lado do medo do bug do milênio. Uma ontologia do pavor construída na base do zapping.
E no centro disso, o fetiche da lembrança. A ideia de que lembrar é um ato político. Esquecem, porém, que a memória sem julgamento vira idolatria do passado. E essa idolatria se apresenta na forma de slogans: “Não vai ter Copa”, “Ninguém solta a mão de ninguém”, “A nossa bandeira jamais será vermelha”. Tudo isso não como pensamento, mas como decalque. Frases coladas no cérebro como selos num envelope vazio.
Mas é claro que há algo de verdadeiro nesse pântano. Não se trata de negar que essas imagens marcaram uma época. Mas o que significam? Qual o juízo que as atravessa? A pergunta que jamais se faz é esta: o que, entre esses escombros todos, é digno de ser lembrado? E por quê?
A resposta está ausente. E talvez por isso mesmo reste apenas a nostalgia – esse remorso sem objeto – como sentimento dominante da tal geração. Uma saudade do que não se compreendeu, uma dor do que não se viveu com profundidade. E a tentativa de fixar isso em texto não é um exercício de compreensão, mas de exorcismo. Um ritual moderno para domesticar a vertigem da insignificância.
Sim, há algo comovente nisso. Mas não é a beleza trágica do homem diante do infinito. É só o desamparo histérico de quem não quer saber da verdade.
You'll Love These
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Postar um comentário